Quanto mais enrugado, melhor. Por muito tempo, essa era máxima que parecia valer quando falávamos da estrutura do cérebro. Mas um artigo publicado na revista Science por dois brasileiros parece derrubar essa teoria. O estudo mostra que as reentrâncias características da superfície do cérebro de alguns mamíferos não têm nada a ver com a quantidade de neurônios, como se cogitava – elas são, na verdade, pura física: resultam da maneira como o órgão se molda às pressões internas e externas em seu desenvolvimento e obedecem ao mesmo tipo de regra que uma folha de papel ao ser amassada.
Até hoje, não se sabia explicar a estrutura do córtex, a camada mais externa de nosso cérebro e responsável por funções como memória, consciência e linguagem. Uma possibilidade era de que o grau de girificação (a quantidade de de dobras, por assim dizer) teria relação direta com o número total de neurônios da região. Mas não havia dados suficientes para corroborar a hipótese. Se o córtex cerebral humano é o que possui o maior número de neurônios, ele também deveria ser o mais dobrado – o que não é o caso.
Coube à neurocientista Suzana Herculano-Houzel e ao físico Bruno Mota, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desvendar esse paradoxo. Eles compararam o cérebro de diversos mamíferos e perceberam que uma regra muito mais simples poderia explicar os dados experimentais: a quantidade de rugas do córtex estaria relacionada basicamente à sua área total e à sua espessura, ou seja, córtices mais finos com áreas grandes tinham muitas dobras; já córtices mais espessos tendiam a ficar menos enrugados. Esse tipo de relação é a mesma observada em bolinhas de papel – quando ‘amassados’, os dois sistemas se deformam de modo a assumir a configuração mais estável.
A Ciência Hoje On-line conversou com Herculano-Houzel sobre a pesquisa, para entender como seus resultados afetam nosso conhecimento sobre o cérebro, o que significam para a compreensão da mente humana e que tipo de novas informações eles trazem sobre o processo de formação do córtex. A pesquisadora participará, na próxima sexta-feira (10/07), de uma sessão da nona edição do Congresso Mundial de Neurociência da Organização Internacional de Pesquisa Cerebral, que vai abordar a importância do estudo do cérebro de animais diferentes para a melhor compreensão da relação entre estrutura e função.
CH On-line: Até hoje, as explicações para as dobras do córtex cerebral tentavam associá-las ao número total de neurônios. Onde elas estavam enganadas?
Suzana Herculano-Houzel: A expectativa de que o córtex cerebral se dobraria conforme ele ganhasse neurônios era intuitivamente razoável, mas apenas isso: era uma intuição. Não era uma hipótese baseada em dados, pois não se conhecia a relação entre o número de neurônios no córtex cerebral e sua superfície, espessura ou volume. Ela se baseava na premissa de que todos os córtices teriam em comum a mesma relação entre número de neurônios e superfície, e na observação de que, com mais dobras, cabe uma superfície maior em um mesmo volume – como um lençol cada vez maior enrodilhado dentro de um cesto de roupa suja.
Suas pesquisas, porém, mostram que essas suposições estavam enganadas.
Sim, nosso trabalho vem há dez anos mostrando que este não é o caso. O número de neurônios não é proporcional à extensão ou volume do córtex e, agora, finalmente tivemos dados suficientes para colocar a hipótese tradicional à prova. Nossa conclusão é de que a razão pela qual o córtex se dobra é física, e não relacionada ao seu número de neurônios. Isso explica como dois córtices com o mesmo grau de dobras, como o do porco e o do babuíno, podem ter números de neurônios completamente diferentes, um dez vezes maior do que o outro; e também como o córtex humano, com três vezes mais neurônios do que o do elefante, tem duas vezes menos dobras.
Se não há relação com o número de neurônios, o que determina as dobras do cérebro?
O córtex se dobra conforme ele responde às várias forças que agem sobre ele no processo de desenvolvimento, como a expansão do número de células e a própria pressão atmosférica. Nosso trabalho mostra que a conformação mais energeticamente favorável que o córtex assume em resposta a essas forças não depende diretamente do número de neurônios, mas sim da combinação da extensão da superfície cortical e da sua espessura. Por sua vez, supomos que essas grandezas são determinadas pela maneira como os neurônios se espalham no córtex durante o desenvolvimento. Por exemplo, podemos espalhar uma mesma quantidade de geleia sobre uma fatia de pão de duas maneiras, como uma camada grande e fina, ou pequena e bem mais espessa. Ao mesmo tempo, esse volume de geleia pode ter mais ou menos fruta (ou seja, ser mais ou menos densa em neurônios).
A quantidade de dobras e essas pressões sobre o cérebro têm alguma relação com o tamanho do crânio de cada animal?
Não. As dobras reduzem o volume final do córtex, mas este volume não é limitado pelo crânio; ao contrário, o crânio se ajusta ao volume do cérebro. Existe uma condição médica chamada hidrocefalia que ilustra isso: sob pressão interna aumentada, o cérebro expande e faz com que o crânio se deforme.
O córtex é a área do cérebro responsável pelos processos mais refinados, pela inteligência. A maior presença de rugosidades não tem, então, qualquer influência sobre esse aspecto?
Nosso trabalho mostra que não há uma relação obrigatória entre o número de neurônios corticais, o grau de dobras, a área cortical e sua espessura. Supondo que a função do córtex dependa sobretudo do número de neurônios disponíveis, então também não deve haver relação entre o grau de dobras e a capacidade cognitiva de uma espécie. Por outro lado, ter um cérebro dobrado deve ser vantajoso de alguma forma: para uma mesma extensão de córtex, nós mostramos que uma menor espessura permite que o córtex se dobre mais – isso poderia favorecer o desenvolvimento de funções especializadas em áreas cerebrais distintas e diminuiria o volume do órgão, facilitando a passagem rápida de sinais. Mas esse aspecto ainda precisa ser mais estudado.
Como fica o cérebro humano nesse contexto? Não temos o córtex mais espesso nem o mais fino, nem o mais rugoso. O que torna nosso cérebro especial?
Quando comecei minha carreira, um dos paradoxos da área era justamente o fato de termos maior capacidade cognitiva do que qualquer animal, mas não termos o maior cérebro, nem o mais dobrado. Isso, no entanto, só é um paradoxo se acreditarmos que o tamanho do córtex ou suas dobras são proporcionais ao número de neurônios – uma suposição comum na época, mas que, de novo, não era baseada em dados. Nos últimos dez anos, temos buscado essas evidências: descobrimos quantos neurônios há nos cérebros de diferentes espécies e mostramos que, dentre os primatas, nosso cérebro é apenas mais um, embora com um número de neurônios que nenhum outro primata consegue atingir, devido a limitações energéticas.
Ou seja, de fato o córtex cerebral humano não é nem o mais extenso, nem o mais fino, nem o mais dobrado, nem o maior de todos. Mas é o que tem o maior número absoluto de neurônios, mesmo comparado com um córtex duas vezes maior como o do elefante: temos em média 16 bilhões de neurônios, contra apenas 5,6 bilhões no elefante. Nossa hipótese é que este número notável de neurônios corticais é a explicação mais simples para nossa superioridade cognitiva, mesmo que não seja a única diferença entre nossa espécie e as outras.
Você trabalhou com cérebros de mamíferos adultos. O que os resultados encontrados podem dizer sobre o processo de formação desse órgão?
O córtex não cresce como uma massa amorfa que subitamente se dobra, mas se dobra gradualmente ao longo do desenvolvimento, conforme ele se expande e muda de espessura, sempre sujeito a uma série de forças, algumas oriundas do seu próprio crescimento. Nosso modelo supõe justamente que a cada momento do seu desenvolvimento ele assume a conformação energeticamente mais estável, dependendo da sua superfície e espessura naquele instante. Nosso próximo passo, em todo caso, é investigar o processo de formação das dobras em espécies diferentes, para testar se o modelo de fato se aplica ao longo do desenvolvimento.
Além de pesquisadora de destaque, você já foi colunista da Ciência Hoje On-line e mantém diversas iniciativas de divulgação científica. Você mesma, aliás, foi quem produziu as fotos das bolinhas de papel que serviram para divulgar o seu artigo da Science. Qual a importância dessa área na sua carreira?
A prática da divulgação científica é de extrema valia para um pesquisador. Ter que pensar em como uma descoberta pode ser interessante, importante ou sequer traduzível para o não especialista faz o cientista descobrir novos aspectos de sua pesquisa. Além disso, as perguntas mais ingênuas de um leigo são muitas vezes as mais fundamentais, em que o especialista, por miopia profissional, não pensa mais. Pensar diferente ajuda o próprio cientista a entender seu trabalho e a comunicá-lo aos seus pares. Depois, de que vale todo o conhecimento gerado pela ciência se ele não retornar ao público? É altamente gratificante ser capaz de explicar a não especialistas o que eu faço. É um prazer para mim gerar novos conhecimentos e também ver que eles ajudam a enriquecer a vida das pessoas e sua compreensão de si mesmas.
Marcelo Garcia
Especial para a Ciência Hoje On-line