A arte que deprecia a ciência

 

Cientistas estão preocupados com a imagem pública da química. A revista alemã Hyle , especializada em debater a filosofia dessa ciência, trouxe no mês de junho uma edição com artigos voltados a analisar o papel da química na literatura e no cinema. A conclusão mostra uma visão popular negativa dessa disciplina, praticada por alquimistas ou cientistas malucos que desenvolvem em laboratórios obscuros venenos que oferecem perigo à humanidade e ao meio ambiente.

O alquimista , tela de 1853 do britânico William Fettes Douglas (1822-1891). No imaginário popular, os praticantes dessa disciplina foram os precursores da figura do químico louco comum no cinema contemporâneo.

Os alquimistas estão na raiz da mistificação da atividade desses cientistas que ganhou espaço nos livros e nos filmes. Figuras vistas como os únicos detentores do poder de transformar qualquer metal em ouro, com a lendária pedra filosofal, os alquimistas eram temidos por seu saber mágico e sobrenatural, capaz de dar vida a homúnculos e de favorecer privilegiados com elixires da juventude.

Vista como uma prática que envolvia magia negra e astrologia, foi considerada heresia – aqueles que com ela se envolviam só podiam estar compactuados com o demônio. Na literatura, a imagem popular dos alquimistas inspirou a construção de personagens como Fausto, o cientista que vendeu a alma ao diabo, o monstro de Frankenstein, ou o cruel Doutor Moreau, cientista que ignora os gritos de dor de suas cobaias animais, segundo a análise da química Roslynn Hayes, da Universidade da Nova Gales do Sul, na Austrália.

Não muito longe dessa caracterização está a figura dos químicos no cenário de hoje, segundo Hayes. “A literatura e os filmes atuais mostram o químico como um maníaco diabólico e perigoso, obsessivo, secreto e arrogante”, afirma ela em seu artigo. “Alquimistas e cientistas são representados como pessoas com valores diferentes dos outros, preparados para sacrificar homens e animais por seus experimentos”.

Na química praticada nos filmes e livros, a busca pelo conhecimento justifica qualquer prejuízo, seja através de efeitos colaterais, poluição ambiental ou contaminação genética. “Todo o glamour atingido com o sucesso de uma experiência se transforma em cinzas quando a mesma vira um desastre imprevisível“, explica Hayes. “É o exemplo de Frankenstein, cuja tragédia começa no momento em que o experimento dá certo”.

Clichês

Cartaz do filme O sexto dia , no qual o protagonista (Arnold Schwarzenegger) descobre que foi substituído por um clone (reprodução).

Em outro artigo da revista, o sociólogo alemão Peter Weingart, do Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica, na Alemanha, analisou 400 filmes que trazem personagens ou histórias associadas ao discurso científico. A química fica em terceiro lugar na ordem de disciplinas mais abordadas, sendo 24% desses filmes de terror, 13% de suspense e outros 13% comédia. Segundo a análise de Weingart, mais de metade dos filmes estudados apresentava a ciência de forma fantasiosa, irreal – 47% abordavam o tema de forma não-ficcional.

“A química não está sozinha nessa posição. A imagem da medicina e da física ainda é pior. Podemos concluir que as ciências mais poderosas são também as vistas com maiores suspeitas”, conclui o sociólogo. Filmes recentes como O enviado (2004) e O sexto dia (2000) abordam a questão da clonagem e deixam explícitas as ansiedades e medos associados à idéia de criação de um ser humano pela ciência. Em ambos os filmes as experiências de clonagem, obviamente, não dão certo. Sucessos de bilheteria como Jurassic Park e Erin Brockovich também não hesitam em implicar cientistas nos mais deferentes tipos de desastres.

Para Roslynn Hayes, os próprios químicos mantêm até hoje atitudes que perpetuam o estereótipo criado. “Os símbolos, fórmulas e teorias usados na química são tão opacos para os leigos quanto eram os dos alquimistas em sua época. Também falham ao não demonstrarem preocupação ética e moral pelos impactos de suas pesquisas”, afirma. Weingart está de acordo com essa análise: segundo ele, o que os filmes populares mostram é que os químicos não conseguem se comunicar com os leigos, apesar de todos os benefícios gerados por sua ciência.

Com a palavra, os químicos.

Juliana Tinoco
Ciência Hoje On-line
26/09/2006