Abaixo a má conduta na ciência

O chamado Homem de Piltdown, uma montagem manipulada de ossos humanos e de orangotango ‘vendida’ como o elo perdido na evolução da humanidade, e a suposta criação de uma linhagem de células-tronco embrionárias humanas pelo cientista sul-coreano Hwang Woo-suk são casos clássicos de fraudes na ciência que repercutiram em todo o mundo.

No Brasil, um caso envolvendo químicos da Universidade Federal de Mato Grosso e da Universidade Estadual de Campinas acusados de forjar resultados de 11 artigos científicos também mereceu destaque em jornais e revistas nacionais e internacionais no primeiro semestre deste ano.

Atentos aos crescentes problemas envolvendo má conduta em pesquisas científicas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) lançaram recentemente documentos com diretrizes para promover a ética na publicação de resultados de pesquisas científicas.

O documento do CNPq é fruto do trabalho de uma comissão criada em maio pela agência especialmente para lidar com a questão. Segundo o presidente do CNPq, Glaucius Oliva, faltava ao órgão normas internas específicas e instrumentos para lidar com o problema.

Do autoplágio à fabricação de dados

Quatro práticas condenáveis são definidas no documento do CNPq, desde a mais branda, que seria o autoplágio – apresentação total ou parcial de textos já publicados pelo mesmo autor sem as devidas referências aos trabalhos anteriores –, à mais grave, a fabricação de dados, ou seja, a apresentação de resultados inverídicos.

As outras duas mencionadas são a falsificação, quando há manipulação fraudulenta de resultados, e o plágio, que consiste na apresentação de resultados ou conclusões de outro autor como se fossem de sua autoria.

Beirão: “Se enganos podem ser inevitáveis, devemos nos empenhar em evitar as fraudes, que contribuem para desacreditar a própria ciência”

O coordenador da comissão e biofísico da Universidade Federal de Minas Gerais Paulo Sergio Lacerda Beirão explica que a ciência tem mecanismos de autocorreção contra informações incorretas, sejam originadas de erros ou de fraudes. Mesmo assim, essas incorreções geram atrasos e desperdício de dinheiro e de esforço intelectual.

“Se enganos podem ser inevitáveis, devemos nos empenhar em evitar as fraudes, que, além dos prejuízos mencionados, contribuem para desacreditar a própria ciência”, afirma ele.

Em relação ao plágio, Beirão avalia que os prejuízos são mais sutis, mas não menos importantes. “Na competição por apoio a futuros projetos de pesquisa, há a possibilidade de recursos serem dados a quem não tem méritos [plagiador], em detrimento daquele que efetivamente tem capacidade de gerar conhecimento [plagiado]”, avalia.

Plágio
O plágio – apresentação de resultados ou conclusões de outro autor como se fossem de sua autoria – pode prejudicar o reconhecimento dos méritos de quem efetivamente produziu o novo conhecimento, em favor de quem apenas o copiou. (foto: pressureUA/ iStockphoto)

Outro ponto do documento condena também a prática – bastante comum, diga-se de passagem – de se incluir, como autores de artigo científico, o nome de pessoas que só tenham emprestado equipamentos ou verba, sem contribuição intelectual. A comissão indica que esses pesquisadores devem ser mencionados apenas nos agradecimentos.

Prevenção e investigação

A partir de agora, a avaliação das denúncias de má conduta será feita primeiramente por uma comissão permanente ligada ao Conselho Deliberativo do CNPq. Caso sejam julgadas verossímeis, as supostas infrações serão submetidas a uma comissão extraordinária de especialistas para análise do caso.

Em situações consideradas graves, pode haver a suspensão de financiamento e, eventualmente, a exigência de devolução dos recursos investidos pelo órgão no trabalho.

A comissão do CNPq visa atuar e definir punições apenas no âmbito do conselho. “Como todo pesquisador tem vínculo profissional com alguma instituição de pesquisa, caberá a ela tomar a atitude que julgar pertinente, mas é provável que a atitude do CNPq influencie nesse julgamento”, acredita Beirão.

O biofísico adianta que o documento tem tido boa repercussão na comunidade científica, que está ciente de que, como em outras profissões, a ciência não é imune à presença de pessoas carentes de formação moral e ética.

Código paulista

Mais poderosa fundação estadual de amparo à pesquisa brasileira, a Fapesp também divulgou em outubro o seu código de boas práticas. As diretrizes se aproximam muito às propostas pelo CNPq e se debruçam em temas como a comunicação dos resultados da pesquisa e sua autoria; o registro, conservação e acessibilidade de dados e informações do estudo; e potenciais conflitos de interesse envolvidos.

Em entrevista à CH On-line, o diretor-científico da fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, avalia que “embora seja consenso que a responsabilidade principal pela integridade ética da pesquisa seja das instituições em que é desenvolvida, é também consenso que as agências de fomento, na qualidade de gestoras de recursos públicos, são corresponsáveis pela preservação dessa integridade”.

Ele defende que, ao instituir um código de boas práticas, a Fapesp assume expressamente responsabilidade e estimula o debate e a atenção permanente sobre questões de integridade ligadas à produção do conhecimento.

Brito Cruz: “A existência do código sinaliza a importância dessas questões e define parâmetros claros para que sejam adequadamente solucionadas”

“A existência do código sinaliza para pesquisadores e instituições a importância dessas questões e define parâmetros claros para que elas sejam adequadamente solucionadas no dia a dia de suas atividades científicas”, acredita.

As medidas punitivas que podem ser impostas pela Fapesp aos autores de más condutas incluem, entre outras, a suspensão temporária do direito de solicitar auxílios e bolsas à entidade, a devolução dos recursos concedidos pela fundação aos autores e a exigência de correção dos registros e relatos das pesquisas.

Renato Sérgio Balão Cordeiro, pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz, acredita que a medida das duas agências vá contribuir para melhorar a imagem internacional da ciência brasileira.

“No momento em que o Brasil desponta no cenário científico internacional – aumentando significativamente sua presença em periódicos indexados, formando mais de 10 mil doutores por ano e dando passos sólidos para alavancar o desenvolvimento tecnológico e a inovação –, as iniciativas do CNPq e da Fapesp são fundamentais e estratégicas para, de forma profilática, impedir fraudes na ciência, instituindo uma cultura de excelência e ética nas novas gerações de cientistas.”

Luís Amorim
Especial para a Ciência Hoje On-line