Acervo Ticuna de 60 anos é reorganizado no Museu Goeldi

 

Em 1941 e 1942, o etnólogo alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendaju (1883-1945) recolheu artefatos rituais entre os índios Ticuna do alto Solimões. Hoje a coleção é abrigada pelo Museu Emílio Goeldi (Belém), na reserva técnica que tem o nome do etnólogo. Um estudo iniciado em 1997 pretende fazer um inventário dos artefatos e reclassificá-los, além de estabelecer a importância dos rituais para essa sociedade. “A preocupação foi identificar as peças e reorganizar o acervo com a participação dos índios”, diz a antropóloga Priscila Faulhaber, coordenadora do projeto.

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Máscaras e instrumentos como os da Coleção Nimuendaju são usados até hoje na festa de puberdade das moças, ritual mais importante dos Ticuna, em que se transmite a tradição dessa cultura às meninas que se tornaram adolescentes

O estudo identificou 48 máscaras e 48 instrumentos rituais da Coleção Nimuendaju. Entre os instrumentos do acervo estão apitos (de argila, frutos, bambu, folha de palmeira ou osso), flautas de osso ou bambu, buzinas de bambu, bastões cerimoniais de madeira, chocalhos (feitos com caracóis ou sementes), tambores de pele de macaco ou de carapaça de tracajá (um tipo de tartaruga) e baquetas de madeira. As máscaras são fabricadas com entrecascas de figueira (tururi). O projeto também coletou 11 peças, entre máscaras e vestimentas.

“Os artefatos são ricamente ornamentados com desenhos que representam animais (reais ou lendários), lugares habitáveis ou inacessíveis (estes considerados território dos heróis), os Ticuna[1] e seus ancestrais”, diz Priscila. É representado ainda o movimento das constelações Ticuna, que indica a sazonalidade das chuvas na Amazônia e rege as atividades de subsistência dos índios — caça, pesca, agricultura e extrativismo. O exame dos objetos e a identificação do significado dos desenhos foram realizados em uma oficina com a participação de seis índios Ticuna.

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Após o exame da coleção, os índios que participaram da oficina realizada no museu no final de 2002 redesenharam as peças e desenharam em cartas celestes o movimento das constelações Ticuna ao longo do ano.

Ao comparar os instrumentos coletados há 60 anos com os usados hoje, percebeu-se que alguns deles deixaram de ser fabricados, como a flauta feita com osso de gavião real, matéria-prima difícil de ser encontrada atualmente. E novos instrumentos passaram a ser adotados. “Um dos índios tem um teclado com o qual imita a melodia dos instrumentos Ticuna”, conta Priscila.

Peças como as da Coleção Nimuendaju ainda são usadas na ’festa da moça nova’. “Nesse ritual, anciãos mostram como seguir as tradições para que haja boa caça, boa pesca e boa colheita”, diz Priscila.

Nessas festas, são iniciadas geralmente várias moças de clãs diferentes. É servido pajuaru (uma bebida fermentada) aos convidados, que têm seus rostos pintados com sumo de jenipapo. As moças ficam confinadas em um quarto fechado, feito com tiras de buriti, uma palmeira amazônica. Vários ritos de fertilidade se encadeiam: o corte do naitchi (tronco que simboliza a fertilidade), danças e cantigas ao som dos instrumentos Ticuna.

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Na festa da moça nova, ao amanhecer, as jovens são tiradas do quarto e têm o corpo limpo e os cabelos arrancados pelas anciãs. Após a pelação, elas são carregadas em esteiras em homenagem à entrada no mundo das mulheres adultas. Para finalizar a festa, são levadas ao igarapé, onde são banhadas.

O resultado da pesquisa será reunido em um CD-ROM com fotos dos artefatos rituais, o vídeo de uma festa de puberdade, sons e cantigas dos índios e uma animação do movimento das constelações Ticuna, além de um inventário lexical elaborado pela lingüista Marília Facó Soares. O CD será lançado em abril, mês em que se comemora o aniversário de Curt Nimuendaju[2], no ano do centenário da sua chegada ao Brasil. 

 

[1] O povo Ticuna habita há pelo menos dois mil anos a região do alto Amazonas-Solimões, nas fronteiras entre Brasil, Peru e Colômbia. Seu território ocupa 600 quilômetros de extensão: começa na região de Chimbote (Peru), ponto mais ocidental, atravessa o Trapézio Amazônico colombiano e vai até a região de Barreira da Missão, no município de Tefé (Amazonas, Brasil), o extremo oriental. Em conjunto, os Ticuna são a população indígena mais numerosa da região amazônica: são cerca de 26 mil índios no Brasil, 10 mil na Colômbia e de 5 a 6 mil no Peru.

[2] Curt Nimuendaju chegou ao Brasil em 1903 e realizou pesquisas na Amazônia a partir de 1905. Estabeleceu-se na região em 1915 e estudou várias tribos diferentes. Começou a estudar os Ticuna em 1923 e faleceu entre esses índios em 10 de dezembro de 1945.

 

Adriana Melo
Ciência Hoje On-line
04/02/03