Mais perto do fim da dengue?

Todo ano, são registrados cerca de 50 milhões de casos de dengue no mundo. No Brasil, a doença já se tornou epidemia. Mas autores de uma pesquisa publicada esta semana na Nature prometem mudar esse quadro ao liberar na natureza mosquitos Aedes aegypti infectados com uma bactéria que inibe a transmissão do sorotipo 2 da dengue. 

Há mais de dez anos, pesquisadores da Universidade de Queensland e de Monash, na Austrália, estudam a bactéria Wolbachia, inofensiva para humanos e comum em muitos insetos, como a mosca-da-fruta. Recentemente, eles descobriram que, quando injetada em embriões de mosquitos, a bactéria é capaz de inibir o desenvolvimento do vírus da dengue nos insetos.

Se os mosquitos não servem mais de lar para o vírus, também não transmitem a doença para humanos. A pesquisa poderia ter parado por aí, mas a equipe de cientistas decidiu substituir uma população natural de mosquitos pelos insetos infectados com a bactéria e resistentes ao vírus da dengue, um feito inédito segundo os autores.

Em laboratório, eles usaram agulhas superfinas para injetar a bactéria em 2.541 ovos de A. aegypti. Depois do nascimento, os insetos passaram a se reproduzir entre si e, como a bactéria é transmitida de mãe para filho, todos se mantiveram infectados.

Liberação dos mosquitos
Durante três meses, milhares de mosquitos infectados com a bactéria ‘Wolbachia’ foram soltos em dois bairros residenciais da cidade de Cairns, na Austrália. (foto: Colyn Huber)

Dois bairros da Austrália, Yorkeys Knob e Gordonvale, da cidade de Cairns, foram escolhidos para a pesquisa de campo. Nesses locais, os cientistas liberaram 299.900 mosquitos infectados durante três meses. A cada duas semanas, os pesquisadores verificavam a frequência desses insetos nos bairros e, se fosse baixa, soltavam mais mosquitos.

Substituição rápida e eficaz

Além de tornar os mosquitos resistentes ao vírus da dengue, a Wolbachia provoca uma anomalia reprodutiva. Se um macho infectado se reproduz com uma fêmea normal, sem a bactéria, os embriões morrem precocemente. Mas para uma fêmea infectada não faz diferença se o parceiro carrega ou não o microrganismo, pois os filhotes necessariamente herdam a bactéria.

Desse modo, a fêmea infectada ganha vantagem reprodutiva sobre as fêmeas normais, que podem carregar a dengue, e logo os mosquitos imunes à doença tomam conta do local. 

Ovitrampas
Foram usadas ovitrampas como a da foto para monitorar a frequência dos mosquitos resistentes à dengue em meio à população de insetos capazes de transmitir a doença. (foto: Colyn Huber)

“O controle da dengue tem se baseado na redução das populações do mosquito transmissor, mas essa tática é falha e precisava de uma alternativa”, diz o líder da pesquisa, o biólogo Scott O’ Neill. “Com a nossa técnica, conseguimos controlar a dengue de modo eficiente, sustentável e a baixo custo, pois o investimento é feito somente uma vez e não constantemente como nos programas de controle baseados em inseticidas.”

Os mosquitos resistentes rapidamente substituíram a população de mosquitos normais em Cairns. Duas semanas após a primeira soltura, eles já representavam 15% dos insetos nos dois bairros. Cinco semanas depois do fim das liberações, eles chegaram a dominar 100% da população de mosquitos A. aegypti em Gordonvale e 90% em Yorkeys Knob.

“A grande vantagem dessa técnica é que são necessários poucos insetos. Não precisamos continuar a colocar o mosquito na natureza, pois, depois de solto, ele se autoestabelece devido às vantagens adaptativas que a bactéria provê”, pontua o biólogo e coautor da pesquisa Luciano Moreira, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Em 2009, Moreira já havia publicado um trabalho sobre o uso da bactéria Wolbachia na revista Cell com o mesmo grupo de pesquisa.

Estudo expandido

Em estudos anteriores, pesquisadores já haviam verificado, em laboratório, a capacidade da Wolbachia de inibir o vírus da dengue, mas as cepas usadas causavam efeitos colaterais nos mosquitos, que passavam a viver menos e colocar menos ovos, tornando mais difícil a sua sobrevivência.

Esses efeitos negativos foram eliminados no estudo atual e por isso a substituição da população de mosquitos não representou riscos para o equilíbrio ambiental. “Nós apenas alteramos a população de mosquitos, não a eliminados ou reduzimos, então não há impacto”, diz O’ Neill.

Por outro lado, o biólogo Luciano Moreira alerta que a pesquisa de campo foi feita em um país onde a dengue não é um problema sério e destaca a importância de que o experimento seja repetido em locais onde a doença é mais presente e a população de mosquitos mais estável durante o ano. 

Já estão programados testes de campo no Vietnã, Tailândia e Indonésia. Também há a possibilidade de o experimento ser feito no Brasil 

Com isto em vista, os pesquisadores já programaram testes de campo no Vietnã, Tailândia e Indonésia, países com alta incidência da dengue. Também existe a possibilidade de que o experimento seja feito no Brasil, mas as negociações para isso ainda estão no início. 

Embora a pesquisa tenha sido feita apenas com o sorotipo 2 da dengue, Moreira conta que estudos preliminares demonstraram que a bactéria Wolbachia inibe os outros três tipos do vírus. O pesquisador calcula que daqui a cerca dois anos os cientistas já tenham resultados conclusivos sobre a ação da bactéria para outros sorotipos. 

Além disso, a Wolbachia também se mostrou eficaz para o combate de outras doenças, como a malária e a febre Chikungunya, doença viral – transmitida pelo A. aegypti e comum na Ásia – que fez sua primeira vítima no Brasil em agosto do ano passado.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line