Será possível que a humanidade pressione de forma tão dramática os recursos naturais de nosso planeta que seja necessário que nos lancemos numa busca desesperada por um novo lar em meio às estrelas, para escapar da exaustão da Terra? Essa é a premissa de Interestellar, filme do diretor Christopher Nolan (da trilogia Batman e A Origem) que estreou no Brasil na semana passada. Verdadeiro mergulho nas ciências cósmicas e na teoria da relatividade, a produção explora e entrelaça conceitos científicos de forma instigante e, se não chega a se comparar aos clássicos do gênero, é uma das películas de ficção científica mais interessantes dos últimos tempos.
O mais pretensioso filme do diretor mostra um futuro não muito distante, em que levamos nossos recursos naturais ao esgotamento. Cooper (Matthew McConaughey) é um engenheiro e ex-piloto que se tornou agricultor – naquele tempo, todos eram agricultores – e cuida de sua fazenda e dos filhos. Ao estudar um estranho fenômeno gravitacional, ele acaba chegando a uma base da agência espacial americana, a Nasa, que agora opera em segredo, já que a opinião pública a respeito dessa área é tão negativa que se ensina na escola que as missões Apollo foram uma farsa para levar os soviéticos à bancarrota.
Lá, ele descobre que a situação está pior do que imaginava e que a única esperança da humanidade é abandonar a Terra. A Nasa, inclusive, já selecionou mundos que poderiam ser propícios à vida humana e pede a Cooper que pilote a missão decisiva que deverá explorar os melhores candidatos e voltar antes que seja tarde demais para salvar o dia. Ele parte, então, por meio de um misterioso buraco de minhoca (ou ponte de Einstein-Rosen, estrutura hipotética que funciona como um atalho no espaço-tempo para alcançar galáxias distantes), para estudar planetas próximos de um buraco negro em outro canto do universo.
Especulação científica
Interestellar é ciência e, principalmente, especulação do início ao fim. É interessante como aborda a passagem do tempo e o paradoxo dos gêmeos e também a maneira como explora o ecossistema dos planetas estudados – a cena do tsunami em um deles é uma das melhores do filme. Por outro lado, Nolan oscila entre extremos: peca tanto pelo excesso de didatismo quanto pela total falta de explicações. Boa mostra disso é que o filme foi criticado por suas especulações, mas também recebeu boas avaliações pela forma como apresentou, por exemplo, fenômenos como o buraco de minhoca, o buraco negro e a própria força da gravidade – prova de que mostrar é melhor do que falar.
O próprio Nolan se defendeu dos críticos, classificando a ciência de Interestellar como deliberadamente especulativa. Vale destacar que a produção contou com a consultoria do famoso físico teórico Kip Thorne, que defendeu as raízes científicas da produção. Leia aqui, aqui e aqui alguns pontos interessantes sobre a ciência de Interestellar.
Além dessa ciência mais ‘dura’, o filme também levanta outras discussões científicas bem atuais, que servem mais como pano de fundo. Por exemplo, diante da situação clandestina da Nasa, é difícil não pensar no lugar da exploração espacial num mundo à beira do colapso: seria mais ou menos importante? E até que ponto deve-se modificar a história em prol de novas perspectivas sociais, por exemplo, para valorizar a formação de fazendeiros, mais importantes do que engenheiros no mundo de Cooper? O próprio processo de decadência do planeta é apenas sugerido, cabe ao espectador imaginá-lo em detalhes fazendo um paralelo sinistro com a situação atual da Terra.
Chamam a atenção, ainda, algumas felizes escolhas do diretor. O falso documentário do início funciona bem e contextualiza o mundo em decadência. A exploração dos silêncios, assim como em Gravidade, é deslumbrante (mas poderia ser mais utilizada). Já a abordagem do amor como uma força que ultrapassa o espaço-tempo é cafoninha, mas interessante, e ainda ajuda a tentar entender o final.
Nenhuma atuação chega a roubar a cena, mas também não compromete – a curta passagem de Matt Damon (Dr. Mann) gera alguns dos melhores momentos do filme. Mesmo assim, um dos maiores problemas de Interestellar é a pouca profundidade da relação entre os personagens. O curioso é que as interações mais humanas (engraçadas, tocantes, sarcásticas) se dão com os robôs que acompanham a aventura – talvez um questionamento sobre as relações homem-máquina, talvez não.
Buracos de minhoca – e de roteiro
Embora interessante, a trama tem lá seus furos – se não quiser saber detalhes, melhor pular para o último parágrafo e evitar spoilers. Prontos? Então vamos lá: em teoria, o professor Brand (Michael Caine) buscou por décadas uma forma de evacuar a Terra. Convencido da impossibilidade disso, no entanto, seu plano era salvar um pequeno grupo e um amplo banco genético humano para preservar a espécie, não quem vivia por aqui. Seria possível ninguém ter percebido seus intentos? Ele trabalhou sozinho o tempo todo? Considerando que atualmente boa parte da ciência busca ser cada vez mais aberta e colaborativa, o dissimulado insucesso de Brand parece anacrônico.
Outro ponto estranho é o ‘patriotismo’: se hoje a exploração espacial já tem se tornado mais e mais internacional e o objetivo do filme é salvar a raça humana, é estranho ver apenas bandeiras norte-americanas nas bases dos planetas candidatos a ‘nova Terra’. Tudo bem, a Nasa pode ter sido a única agência a permanecer ativa, mas não teria buscado todos os melhores pesquisadores do mundo que restassem?
Quando Cooper é levado ao tesserac, estrutura hipotética de cinco dimensões que permite se deslocar pelo tempo, o filme também envereda pelos paradoxos. O buraco de minhoca e o próprio tesserac parecem ter sido criados por humanos do futuro, uma humanidade muito além das três dimensões, que interfere no passado para salvar-nos (e a si mesmos) de um planeta em colapso – paradoxo clássico da ficção científica, que ainda aparece outras vezes no filme e para o qual não há respostas definitivas: será possível voltar ao passado e modificá-lo?
Há outras questões: como Cooper consegue interagir com o campo gravitacional para mandar mensagens? E como usou o simples código Morse para transmitir dados coletados no buraco negro? Questões complexas, que talvez nosso limitado entendimento não permita responder. Aliás, a leitura do livro do próprio Kip Thorne sobre o que é ciência e o que é especulação em Interestellar pode ajudar a esclarecê-las (ou não, muito pelo contrário).
No fim, Interestellar pode não se igualar a obras cânones do gênero, como 2001, mas sem dúvida é uma das melhores ficções científicas recentes. A mistura de especulação e ciência, embora sofra com o excesso de didatismo, dá asas à imaginação dos apaixonados pelos mistérios do cosmos – e até os questionamentos que levanta servem de combustível para horas e horas de prazerosa discussão. Diante de tantas hipóteses e possibilidades, só nos resta ‘orar’: futuros humanos, de onde quer que vocês estejam no espaço-tempo, olhai por nós e por nosso pequeno planetinha azul.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line