A alma encantadora dos sertões

Nas obras de Guimarães Rosa (1908-1967), a natureza é tão importante quanto os personagens da história. Ela não é mercadoria, recurso ou produto destinado ao uso humano. Tampouco é pano de fundo para o que acontece na vida das pessoas. O mundo natural, para o escritor mineiro, interage com o ser humano em um processo de transformação mútua. Em suas próprias palavras: “O sertão é dentro da gente.”

Essa relação pessoal e sinestésica do autor com a natureza é explorada pela bióloga Mônica Meyer no livro Ser-tão natureza: a natureza em Guimarães Rosa. Por meio da análise do manuscrito inédito Boiada, composto por observações e impressões do escritor feitas em viagem pelo sertão de Minas Gerais, a bióloga busca desvendar o olhar de Guimarães Rosa sobre a natureza – especialmente o agreste mineiro.

A viagem de Guimarães Rosa teve início no dia 10 de maio de 1952, mas somente nove dias depois ele começou a acompanhar os vaqueiros e a travessia da boiada de uma fazenda a outra. A comitiva de oito pessoas – mais o escritor – era liderada pelo vaqueiro Manuelzão, o mesmo que inspirou o personagem homônimo do livro Manuelzão e Miguilim.

Durante o percurso de dez dias, feito no lombo da mula Balalaika, Guimarães Rosa reuniu diversas anotações, que incluem desde registros de datas e locais, comentários sobre nomes e aparência de flores, animais e insetos até divagações pessoais sobre voo de pássaros.

O escritor Guimarães Rosa, autor de clássicos da literatura brasileira como Grande Sertão: Veredas e Sagarana, fez em 1952 uma viagem pelo sertão de sua terra natal, Minas Gerais, que deu origem ao manuscrito inédito Boiada (foto: Bernardo Foresti / Flickr).

Natureza abstrata
A partir do inventário informal da fauna e flora do sertão de Minas Gerais e da observação do comportamento dos vaqueiros com seus animais feitos por Guimarães Rosa, Meyer percebeu que a natureza, para o escritor, tem significados espirituais e abstratos que vão muito além da ciência tradicional. Por isso, a bióloga se dedica a destrinchar em seu livro, por exemplo, como o autor nomeia e classifica cores, cheiros, sons, animais e plantas e de que modo essa descrição reflete sua relação com esses elementos.

Por ser fruto de sua tese de doutorado em antropologia – defendida em 1998 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) –, o livro de Meyer tem uma primeira parte bastante teórica, que abrange os dois primeiros dos quatro capítulos que compõem a obra. Neles, a autora discorre sobre as várias concepções de natureza usadas por acadêmicos e apresenta uma explicação mais geral sobre notas de campo e sobre o manuscrito Boiada.

É somente a partir do terceiro capítulo que Meyer se volta exclusivamente para Guimarães Rosa e seu Boiada. Por isso, para o leitor que não está acostumado com textos acadêmicos, a primeira parte do livro pode parecer um pouco cansativa. Entretanto, a linguagem fluida de Meyer, por vezes beirando a poesia, tira o peso que os academicismos e citações teóricas impõem ao texto. No final das contas, Ser-tão natureza é denso, mas sua leitura é dinâmica e agradável.

As observações sobre as plantas e os animais do sertão mineiro feitas por Guimarães Rosa em Boiada evidenciam a importância da natureza em suas obras (foto: Christoph Diewald / Flickr).

Articulação de saberes
Da biologia para a antropologia, a mudança na trajetória acadêmica de Meyer não é tão radical quanto parece. Graduada em biologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Meyer ingressou, logo no início de sua carreira, na área de educação da saúde, onde passou a ver o ensino de biologia de forma diferente daquela ensinada no colégio.

No mestrado, Meyer estudou a saúde no universo operário e do trabalho e, depois, se interessou pelo mundo natural. “Como o homem transforma a natureza por meio do trabalho, procurei analisar no doutorado o mundo natural”, explica a pesquisadora.

Foi então que ela voltou os olhos para Guimarães Rosa e para o manuscrito Boiada, com sua representação de vaqueiros e sertanejos. “Vi que Guimarães Rosa tinha um olhar atento para a natureza desde Magma e Sagarana, seus primeiros livros”, afirma. “Em Boiada, no entanto, esse olhar se evidencia.”

Assim como os outros livros de Guimarães Rosa, Boiada é impregnado dos neologismos célebres do escritor. “Boiada é uma viagem de Rosa em si mesmo”, resume Meyer.

Segundo a autora, a pessoalidade do relato do escritor mineiro, entretanto, não tira o seu caráter objetivo, embora o diferencie da observação científica. “Rosa ‘reencanta’ e dá significado à natureza desencantada pela ciência tradicional”, comenta Meyer. E completa: “Nesse ‘reencanto’, a mensagem recebida pelo leitor é a de que a natureza não é mercadoria – como geralmente a vemos –, mas sujeito.”

Ser-tão natureza: a natureza em Guimarães Rosa
Mônica Meyer
Belo Horizonte, 2008, Editora UFMG
231 páginas – R$ 36,00
Tel:  (31) 3409-4656 

Isabela Fraga
Ciência Hoje On-line
19/05/2009