A dupla hélice e a contracultura

 

“Se eu fosse um poeta, gostaria de escrever como Michael McClure
– se pelo menos eu tivesse o seu talento.”

Francis Crick

São Francisco, verão de 1959. A livraria City Lights, comandada pelo poeta americano Lawrence Ferlinghetti, já era conhecida como o principal ponto de encontro de uma nova geração de artistas e pessoas preocupadas com a formulação daquilo que na década seguinte seria chamado de contracultura. Poetas beat , pintores expressionista-abstratos, cineastas experimentais e músicos podiam ser vistos entre suas estantes. Nem todos esperariam encontrar em um tal ambiente um cientista de grande renome.

O tecladista Ray Manzarek e o poeta Michael McClure

Pois foi no porão dessa livraria que Francis Crick — que seis anos antes elucidara, com James Watson, a estrutura em dupla hélice da molécula de DNA — encontrou um pequeno volume de um poeta então pouco conhecido: Michael McClure. Era um livro de tiragem limitada, 150 exemplares, com um poema que descrevia o efeito do peiote — cacto que contém a mescalina, substância alucinógena utilizada por índios mexicanos. Impressionado, Crick comprou um exemplar. Oito anos depois, quando lançou um livro sobre vitalismo chamado Of molecules and men , utilizou como epígrafe dois versos do Peyote Poem :

“ESTE É O PODEROSO CONHECIMENTO
nós sorrimos com ele.”

Esse encontro entre poesia e ciência não ocorreu por acaso, mas como conseqüência de toda uma busca — de ambas as partes — por conciliá-las. Se McClure era um ardoroso leitor de ciência, conhecedor das teorias mais inovadoras da época da biologia e cibernética (o que ativamente tentava traduzir em seus poemas, não apenas no uso de termos específicos, mas também na sua estrutura), também Crick não era alheio às pesquisas poéticas de linguagem — como atesta sua própria presença nos porões da City Lights.

Em um simpósio sobre McClure realizado em 1975, Crick faria uma bela defesa desse encontro: “Espero que ninguém continue pensando que os cientistas são pessoas aborrecidas e sem imaginação, sempre mensurando as coisas com o sangue frio. Toda profissão possui sua dose de chatos, mas bons cientistas são, ao menos, romanticamente ligados ao seus objetos de pesquisa e muitas vezes passionalmente envolvidos com sua busca. É verdade que muitas vezes a ciência já é poesia o suficiente para eles. Mas não existe substituto efetivo para o jogo sutil das palavras, e de tempos em tempos alguém se vê enfeitiçado pelas formulações exatas da ciência e espera por uma poesia que fale fundo a sua alma.”

Nos anos 1960, quando o rock se consolidou como forma de arte, e serviu de veículo de divulgação das mudanças comportamentais da época, McClure estava no olho do furacão. Seja como compositor para artistas como Janis Joplin (é dele a letra de “Mercedes Benz”, um dos maiores sucessos da cantora americana), ou sobretudo como a influência fundamental da poesia de Jim Morrison, vocalista da banda californiana The Doors. Talvez não por coincidência, o nome dessa banda foi retirado do título de As portas da percepção , livro de Aldous Huxley sobre o peiote.

Não se pode inferir do episódio que Crick tenha adquirido o livro devido a um interesse prévio pelo peiote — ele relata que, à época, desconhecia a substância. No entanto, o físico inglês declararia, no texto sobre a obra de McClure: “Nos últimos anos vim a apreciar como o poema transmite bem o efeito do alucinógeno, mas na época o que me fascinou foi a radiante qualidade e o inesperado dos versos.”

O ator Dennis Hopper declarou certa vez sobre Michael McClure: “sem ele, o brado que foi os anos 60 teria sido apenas um suspiro”. Talvez o mesmo se possa dizer de Francis Crick e a ciência do século 21.

Sergio Cohn
Poeta e editor da Azougue Editorial
Especial para a CH on-line
23/04/03