A épica travessia de Thor Heyerdahl

Kon-Tiki teria tudo para ser apenas mais um blockbuster: uma grande aventura, uma história de amor e até mesmo um galã. Mas o filme norueguês transcendeu os clichês do cinema enlatado à la Hollywood – e talvez por isso não tenha levado o Oscar na noite passada. A obra, dirigida por Joachin Rønning e Espen Sandberg, concorria na categoria “filme em língua estrangeira”. Mas ficou a ver navios. A estatueta foi para o austríaco Amor.

Seja como for, Kon-Tiki narra uma das mais fascinantes jornadas científicas do século 20. Nosso protagonista é Heyerdahl (1914-2002), zoólogo, geógrafo e etnógrafo norueguês que, em 1947, reconstruiu uma primitiva jangada inca e nela pôs-se a singrar o maior oceano da Terra: o oceano Pacífico.

Sua ideia era empreender uma travessia que, partindo de Callao, no Peru, deveria chegar às lonjuras da Polinésia – sem qualquer tipo de propulsão que não fossem os ventos ou as correntes marítimas.

“Missão suicida”, “loucura desvairada”, “extravagância vaidosa”. Uma verdadeira coleção de críticas e desincentivos se colocou no caminho de Heyerdahl. Por que, afinal, ele arriscaria sua vida em uma empreitada tão perigosa?

Resposta simples: ele queria provar a validade de sua teoria, segundo a qual a Polinésia poderia ter sido habitada por povos incaicos – ideia que confrontava o paradigma reinante à época. Para a ciência, não era razoável supor que os pré-colombianos, por avançados que fossem, tivessem capacidade técnica de navegar tão longa distância sobre a fúria dos mares.

Eis que, em 28 de abril de 1947, Heyerdahl inicia sua viagem. Contrariando todas as expectativas, chegou são e salvo ao atol de Raroia, na Polinésia Francesa.

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Marujos acidentais

Não obstante verdade, a jornada de Heyerdahl é tão inacreditável quanto as mais incríveis histórias de pescador.

A travessia durou 101 dias. Pegando carona na corrente de Humboldt, favorecido pela generosidade dos ventos alísios, percorreu com certa facilidade os 8.000 quilômetros que separavam a América das “ilhas dos mares do sul” (assim o explorador referia-se à Polinésia, onde, com a esposa, passara a lua de mel na década de 1930).

Heyerdahl ganhou moral na comunidade científica. E, como bônus da expedição, o branquelo ainda garantiu para sua tez nórdica um belo de um bronzeado.

A jangada Kon-Tiki
Nomeada em homenagem a um deus inca, a jangada Kon-Tiki foi protagonista de uma travessia improvável. (imagem: Wikimedia Commons)

Obviamente, o aventureiro norueguês não estava sozinho. Levou consigo uma tripulação de cinco outros “marujos”, que, como ele, tinham pouca ou nenhuma experiência em navegação. A peripécia entrou para os livros de história. E a destemida balsa inca é hoje atração do Museu Kon-Tiki, em Oslo.

“Embora parecesse um capricho extravagante, a viagem foi, na verdade, uma experiência cuidadosamente planejada com o objetivo de explorar as capacidades náuticas dos povos antigos e, ao mesmo tempo, navegar em clara rota de colisão com o dogma científico dominante”, escreveu o arqueólogo Donald Ryan, da Royal Geographic Society.

Incas na Polinésia: afinal, Heyerdahl estaria certo?

A ciência ainda não tem uma palavra definitiva. Para a maioria dos etnólogos, no entanto, a teoria de Heyerdahl não é exatamente correta. Acredita-se que a Polinésia tenha sido habitada a partir do sudeste asiático e da Oceania; não da América.

Há, entretanto, suficientes pistas arqueológicas e culturais para os que querem se aventurar na linha argumentativa de Heyerdahl. Feições de estátuas e esculturas daquelas bandas assemelham-se ao estilo incaico; a saborosa batata-doce dos povos andinos é também encontrada na Polinésia; mitologias da região sugerem ancestrais de uma terra distante, cujas características batem com as da América pré-colombiana.

A ciência ainda não tem uma palavra definitiva. Mas há suficientes pistas arqueológicas e culturais para os que querem se aventurar na linha argumentativa de Heyerdahl

Existem também lendas incas que mencionam “deuses e sábios” que, abandonando os Andes, rumaram para além do Pacífico. Ainda, segundo Heyerdahl, os ventos alísios e as correntes marítimas favorecem os navegantes que chegam à Polinésia a partir da América, mas desfavorecem os que vêm a partir da Ásia.

Segundo os estudos do etnólogo norueguês, uma leva migratória da América do Sul teria colonizado algumas ilhas da Polinésia por volta do ano 1.100 d.C.

Os detalhes da teoria estão reunidos em diversos trabalhos publicados por Heyerdahl. O mais emblemático deles é o bem-humorado relato de sua viagem épica, livro que ganhou edição em português sob o nome A expedição Kon-Tiki (traduzido diretamente do norueguês pela José Olympio Editora). Leitura das mais agradáveis, esse saboroso relato apresenta ao leitor os mínimos detalhes da expedição científica mais audaciosa de toda uma geração.

Heyerdahl também escreveu um tratado científico acerca do tema: Índios americanos no Pacífico: a teoria por trás da expedição Kon-Tiki, comentado e revisitado em recente texto do arqueólogo Donald Ryan. E, insistente que era, dirigiu também um documentário sobre o assunto (esse, sim, levou um Oscar, em 1951).

Assista ao documentário sobre a expedição

Apesar da falta de evidências que corroborem a teoria do aventureiro, a geneticista Erika Hagelberg, da Universidade de Cambridge, tem novos elementos para temperar as discussões sobre ela: “Ossos pré-históricos da Ilha de Páscoa contêm os mesmos marcadores genéticos encontrados nos polinésios modernos.” A Ilha de Páscoa – sabidamente marcada pela presença de povos sul-americanos – pode ter sido, assim, importante elo entre esses dois mundos. Segundo a pesquisadora, até o momento só foram examinadas algumas poucas centenas de ossadas. “Ainda temos anos de árdua pesquisa à frente”, escreveu Hagelberg.

Se ainda há dúvidas quanto à origem dos polinésios, não mais se discute a possibilidade de povos antigos terem sido capazes de percorrer longas distâncias pela via marítima. E, nesse ponto, Heyerdahl provou estar absolutamente correto. Para ele, “oceanos não são barreiras, mas sim caminhos”.

Ciência de gabinete
Houve um tempo em que ser cientista era, entre outras coisas, lançar-se a temíveis jornadas de exploração. Essa espécie de ciência-aventura era típica nos séculos 18 e 19, tendo perdurado com razoável vigor até princípios do 20 – afinal, a Terra ainda não havia sido inteiramente explorada. Foi a época áurea dos grandes naturalistas, como Alexander von Humboldt (1769-1859), Alfred Wallace (1823-1913), Johann Baptiste von Spix (1781-1826), Carl von Martius (1794-1868), entre tantos outros. Eram homens de saberes ecléticos, representantes de um tempo em que a ciência ainda não havia sido domada pela ditadura epistemológica da fragmentação do saber. Hoje se faz ciência com muito mais burocracia do que com entusiasmo; e as grandes “jornadas” parecem ser, na verdade, as infindáveis caçadas a editais de financiamento. Com alguma dose de romantismo, é interessante pensar que o zoólogo, geógrafo e etnógrafo Thor Heyerdahl possa ser considerado um remanescente moderno dos naturalistas exploradores de um tempo que já não existe mais.


Henrique Kugler

Ciência Hoje/ RJ