Imagine visitar uma exposição em que as obras sejam fragmentos das histórias de vida de todas as pessoas do Brasil. Em cada corredor, cenas de fatos corriqueiros ou marcantes, de escolhas e fatalidades. Há duas décadas, o Museu da Pessoa pretende ser algo semelhante a isso – um ambiente virtual que registra e expõe relatos orais de indivíduos de todo o país.
Em comemoração aos 20 anos, foi lançado, no final do ano passado, o livro Todo mundo tem uma história pra contar, que traz 20 depoimentos de pessoas de todo o país. Selecionados de um acervo de mais de 15 mil relatos, cada um deles mereceu apresentação de jornalistas, escritores e outras personalidades.
A motivação para criar o museu surgiu no fim de 1991. Na ocasião, a historiadora Karen Worcman terminava um trabalho de entrevistas com imigrantes judeus no Rio de Janeiro. A experiência fez surgir na pesquisadora a percepção de que todos têm direito à preservação de sua memória. Desde então, a instituição registrou cerca de 18 mil depoimentos, que deram origem a 52 livros, 24 documentários, 50 exposições e diversos outros produtos.
Com vocação virtual desde o início, o museu começou distribuindo relatos gravados em VHS e digitalizados em CD-ROMs. Quando a internet chegou ao Brasil, o material foi sendo transferido para a rede e, em breve, o número de depoimentos disponíveis no site chegará a 10 mil.
Um dos pilares conceituais das atividades da instituição é a noção de que é muito importante parar e ouvir o que os outros têm a dizer. “Muitas vezes, acreditamos que o mundo é exatamente da forma como percebemos”, afirma Worcman. Para ela, quando isso acontece ficamos presos a uma visão muito limitada da realidade. “Ao escutarmos a história de outra pessoa, vemos que existem formas diferentes de enxergar as mesmas situações, o que amplia nossos horizontes”, completa.
Por outro lado, ela ressalta que, ao construir uma narrativa autobiográfica, o indivíduo passa a dar mais valor a si mesmo. “É como uma viagem, em que a pessoa fica fascinada ao olhar, a partir de um novo ângulo, para os acontecimentos de sua vida”.
Existem diversas formas de se tornar parte do acervo, mas as principais são marcando uma entrevista no museu ou enviando material para o site. Quando o depoimento é colhido na própria sede, em São Paulo, a pessoa conta sua história para um profissional cuja função é ajudar na construção da narrativa.
De acordo com Worcman, nesse caso existe uma grande preocupação para que o relato sofra a menor interferência possível. “O entrevistador pode ajudar a pessoa a retomar o fio da meada e não se perder em reflexões, por exemplo, mas sua função primordial é escutar”, ressalta. “É um relato subjetivo, por isso nunca cobramos precisão histórica ou informações detalhadas”, completa.
Já com o envio pela internet, é possível que pessoas de outras regiões do Brasil também tenham suas histórias preservadas. Nesse caso, o depoente pode optar por escrever um texto, enviar um vídeo ou ambos. Tanto no caso do site quanto no da entrevista é possível anexar imagens ao relato.
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De todos para todos
Outra preocupação que orienta as ações do museu está relacionada à construção da memória social. Segundo Worcman, esse é um termo que, em história, se refere a um conjunto de elementos do passado que, de alguma forma, estão presentes em toda uma comunidade, ainda que não se perceba. “Por exemplo, uma pessoa do Nordeste muito provavelmente terá alguma influência do personagem histórico Lampião em sua vida”, afirma.
A intenção do museu é que essa memória social seja constituída não apenas de algumas figuras e acontecimentos específicos, mas do máximo de pessoas possível. Para Worcman, isso faz com que os indivíduos deixem de estar alheios às histórias das comunidades em que vivem.
Entretanto, mesmo convicta em relação à relevância do projeto, a historiadora reconhece que é grande a dificuldade em estimular as pessoas a ouvirem os depoimentos. “Ainda acho que vale a pena escutar todas as histórias, mas é fato que temos cada vez menos tempo disponível e mais estímulos concorrendo pela nossa atenção”, diz.
Ela conta que, para superar esse desafio, o museu está organizando os depoimentos em categorias. Isso facilitará a busca de quem tiver objetivos específicos, como escutar relatos de mães ou narrativas sobre a infância, por exemplo.
Múltiplas faces
Além de gravar relatos em sua sede e recebê-los pela internet, o Museu da Pessoa realiza diversas outras atividades de constituição e preservação da memória. Exemplos disso são os programas ‘Memória local na escola’, que ensina a metodologia de registro para alunos e professores de escolas públicas, e ‘Conte sua história’, que realiza gravações de depoimentos temáticos (sobre experiências de trabalho, por exemplo) em uma cabine itinerante, que circula pela capital e outras cidades de São Paulo.
A entidade também realiza projetos para várias organizações, como empresas privadas e públicas, sindicatos, clubes de futebol etc.
Yuri Hutflesz
Ciência Hoje On-line