A história lá fora

Impressões mexicanas, parte 2

 

 A fadiga de viagem (irritantemente chamada jet lag) me acorda antes do despertador (meu celular). No banho (ao fundo, CNN en español), lembro-me de que água é um problema para a Cidade do México (ironicamente, construída sobre um lago pelos astecas). Certo, vamos colaborar.

A TV comenta as eleições em Honduras (é estranho pensar que estou tão perto daquele país). O assunto, agora, não me interessa (dias depois, vejo bate-boca entre o agora ex-presidente Zelaya e a repórter Patricia Janot, da CNN, no mesmo canal; ela alegando a tal imparcialidade da cobertura, blá, blá, blá…)

Percorro, de volta, com incerteza, o labirinto de corredores até o elevador (na noite de chegada, Jesús foi meu guia). O bufê tem a parte comível (frutas, granola, geleia, mel, iogurte etc.) e, relativismo cultural à parte, a seção heavy metal (certo seria punk rock): carnes com molhos de aspecto pastoso e indescritível; feijões; ovos e bacon… Olho ao redor, e a opção pelo cardápio ‘certo’ parece ser só minha. No salão de café, a TV mostra um desses programas populares, com um repórter flagrando um policial, banhado pela luz do Sol, dormindo em um banco reclinado da viatura. A vítima ronca. Os garçons riem e prosseguem o trabalho.

Meu primeiro destino histórico: Hospital de Jesús Nazareno. Dica do físico mexicano Feliciano Sanchez, atual diretor do Centro Latino-Americano de Física (Claf), que divide o prédio histórico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) com a Ciência Hoje, no campus da praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Botafogo (Urca, para alguns).

Pelo mapa, são poucas quadras do hotel. O hospital é tido como o mais antigo em funcionamento do continente americano.

Caminho por ruas que poderiam ser a Florêncio de Abreu, em São Paulo (SP), ou a Marechal Floriano, no Rio de Janeiro (RJ). Lojas e lojas de eletrônica e derivados. Noto que há um número exagerado de policiais nas ruas, carros de polícia indo e vindo. Penso no confronto com os narcos ao norte do país (descubro, mais tarde, o motivo).

Alteraram o local onde o imperador asteca Montezuma II se encontrou com o explorador espanhol Hernán Cortés?

Chego ao destino (20 de Noviembre, n. 86). Decepção. Parece o prédio do Mappin, em São Paulo (SP), com um letreiro grande na frente: ‘Hospital de Jesús’ (não me lembro se havia o ‘Nazareno’). Deve ser engano. Não pode ser a construção de 1524. Alteraram o local onde o grande Montezuma II, imperador asteca, se encontrou com o explorador espanhol Hernán Cortés? Penso: estou em um hospital homônimo. Um senhor, cerca de 70 anos, sai da grande entrada do ‘Mappin’. Está de jaleco branco. Pergunto se aquele era o hospital onde Montezuma encontrou Cortés. Sim, é a reposta, acrescida da data de fundação e de outra informação ímpar: os restos de Cortés estão em uma igreja (Templo de la Concepción de Jesús Nazareno), atrás do hospital. Ele me diz para seguir pelo corredor do ‘Mappin’ até uma portaria.

Chego à portaria. Uma senhora no balcão de informações… pessoas conversam e esperam o elevador… Em frente, há uma pequena entrada. Sigo. E aí um mundo inteiramente novo se revela. Estou numa construção de 1524. Abóbadas e colunas de pedra, tom alaranjado nas paredes. Dois andares. Corredores amplos, jardim ao centro. Bonito. Bem cuidado. Silencioso. Uma placa anuncia: naquele exato local, Montezuma e Cortés se encontraram pela primeira vez. Dou um passo à frente, na esperança de pisar exatamente no mesmo local. Imagino o encontro. Sinto-me, agora, como parte (insignificante, claro) da história do México. Desce pela medula espinhal certo ressentimento em relação ao que os espanhóis fizeram a este país (voltaremos ao assunto, de modo mais incisivo, nas próximas postagens).

Hospital de Jesús Nazareno
Sede de uma loja de departamentos ou marco de um encontro histórico? Fachada do Hospital de Jesús Nazareno, na Cidade do México (foto: Alejandro Linares Garcia).

O Hospital de Jesús é estranhamente silencioso. Ouço com nitidez o canto dos pássaros que frequentam o jardim central. Mais estranho: praticamente não há pacientes, fila de espera. Será público? Estou acostumado às câmaras de horror que são as salas e os corredores de hospitais públicos no Brasil (já frequentei vários, como paciente ou repórter). Por vezes, vejo alguém de jaleco. Há, no segundo andar, apenas um homem, sentado, lendo o que me parece ser a Bíblia miniaturizada. Vou embora, sem resolver o que é, para mim, o primeiro mistério da sociedade mexicana: por que não há pacientes, filas, confusão, gente gemendo, funcionários tratando com descaso gente humilde? Alimento a esperança de que, um dia, um sociólogo mexicano me esclareça o caso. Sigo para a igreja, para ver os restos de Cortés. Está fechada. Reforma, acho.

Acho na internet bela coleção de fotos do hospital e do templo. (em tempo: não costumo levar máquinas fotográficas nas viagens, pois sempre encontro na internet alguém com muito mais habilidade artística do que eu – o que não é difícil, dada a minha total falta de sensibilidade para a arte de capturar imagens; na faculdade, na cadeira ‘Fotojornalismo’, fiz o minimum minimorum para ser aprovado).

Entrada - Museu de la Ciudad de Mexico

Consulto o mapa. Acho o Museo de la Ciudad de México, ali ao lado (Pino Suarez n. 30). Entrada: 30 pesos. O fato de os preços serem geralmente números grandes por vezes me assusta. São R$ 4, apenas.

A casa que abriga o museu já valeria a entrada: antigo Palácio de los Condes de Santiago de Calimaya, cuja edificação começou no século 16. Numa visão marxista às avessas, penso que os ricos são uma classe universal. Vivem bem em qualquer lugar. Dois destaques da visita: 1) um quatro (cerca de 10 m por 5 m) com as quatro paredes todas pintadas com temas diversos. O ambiente tem temperatura e luminosidade controladas. É obra do pintor mexicano (que não se considerava pintor) Joaquín Clausell. Era seu estúdio, que fica em um tipo de torre no casarão. É a Torre de las Mil Ventanas. No térreo, seu escritório, mantido com os móveis originais. Poderia ficar horas olhando os infinitos detalhes naquele quarto…

Passo por uma linda exposição de fotos em preto e branco. São imagens jornalísticas. Muitas delas poderiam ser do Brasil da década de 1950. Crianças pobres, ruas de terra, esgoto a céu aberto, choque entre o extravagante e o humilde, o rural e o urbano… Duas me marcam: 1) crianças imundas, em um tipo de lixão, comem restos de comida; 2) um garoto com roupas sujas e rasgadas, descalço (acho), com aquele chapelão mexicano, posa espremido entre dois carros de luxo da época, cujos faróis e parachoques parecem vigiar (ou oprimir) a criança, que mantém um semblante sério, como se tivesse sido obrigada a permanecer ali. Ao sair, busco o nome do fotógrafo. Hector García. Repórter fotográfico. Muito bom.

É forte indício de que você fracassou quando pessoas de sua idade começam a ganhar o Nobel ou se tornar presidentes

Saio do museu e decido ir em direção ao Palacio de Gobierno. Descubro que o presidente Felipe Calderón (dois anos mais jovem do que eu… certo, é forte indício de que você ‘fracassou’ quando pessoas de sua idade começam a ganhar o prêmio Nobel ou se tornar presidentes) não mora ali, mas sim em um tal [Palacio Presidencial de] los Pinos ao algo assim.

O verdadeiro México se descortina. Passo a gostar mais do passeio matinal. Para que o leitor brasileiro entenda, é preciso uma comparação: imagine que o Palácio da Alvorada, em Brasília, tivesse, à sua volta, ruas como aquelas da região do Saara, no Rio de Janeiro, ou da 25 de março, em São Paulo. Ou seja, comércio (bem) popular. O único lado livre das lojinhas de bugigangas, de comida e das calçadas gordurosas é a frente, que dá para a praça monumental.

O caminho que leva ao Palacio de Gobierno está apinhado de policiais e militares. Muitos usam aqueles trajes de ‘tartaruga ninja’ (caneleiras, capacete, ombreiras e, claro, cassetetes longos), como os da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, quando tem que enfrentar camelôs na rua da Carioca, no centro do Rio – por sinal, Natal é época de pancadaria naquela região.

Entro em uma casinha antiga. É a primeira imprensa da América Latina. Lá, pergunto ao vigia simpático, que me convida a visitar o local, sobre a enxurrada de policiais. Ele me explica que Calderón vai estar naquela tarde no Palacio de Gobierno. Os policiais, lá fora, no entanto, não estão tensos. Pelo contrário, a grande maioria está relaxada ou descontraída – penso que aquela coisa de milico carrancudo, imóvel, sempre em posição de sentido, é só com mariner norte-americano.

Percorro a região do palácio, dou rápida olhada no Templo Mayor, ali ao lado. Lindo. Reservo o programa para outro dia, pois é daqueles que se deve realizar com tempo (voltarei ao assunto, mas adianto que não tive o tempo que gostaria para a visita).

Catedral Metropolitana da Cidade do México
Quem esperaria encontrar um pêndulo de Foucault dentro da Catedral Metropolitana da Cidade do México? (foto: Carlos Martínez Blando).

A catedral está ali. Por que não? O altar impressiona. Muitos turistas. Por dez pesos (R$ 1,50, mais ou menos), visito a sacristia. Uma senhora (60 anos?), com paciência zen-budista (ou, melhor, asteco-maia), repete a mesma explicação para cada visitante. Pego carona na lista de pergunta de uma família portenha (reconheço pelo sotaque, que, para mim, é familiar). As pinturas no teto são de 1600 e pouco. Mas o destaque fica para um Cristo na cruz ao fundo, em uma redoma (acho). Da cabeça aos pés (os braços são móveis) é uma peça única de marfim, o que faz dela a maior em sua categoria no mundo. A explicadora fala sobre uma caixa de ébano que repousa sobre uma mesa, do lado esquerdo. Entendi o espanhol, mas confesso que não entendi a serventia do objeto.

Saio da sacristia, visito altares secundários. Mas aí me defronto com algo que realmente me chama a atenção. Um fio de aço parte do alto do teto da igreja e tem, ao final, um peso na forma de um cilindro, pesado, cuja ponta é afilada e quase toca o chão, onde vemos várias datas, desde o século 16 (acho) até nossos dias, com linhas ligando esses pontos.

Um fio de aço parte do alto do teto da catedral. É um pêndulo de… Foucault! Física na igreja.

É um pêndulo de… Foucault! Prova experimental de que a Terra gira. Física na igreja (confesso que a imagem do Cristo de marfim logo se esvai do meu córtex; a culpa judaico-católica – apesar de eu não ser nem um, nem outro – inunda minhas sinapses). Confira um texto em português (de Portugal) sobre a física do pêndulo.

Ao sair, noto uma caixa cheia de cadeados presos a ela. Seriam oferendas? Centenas deles, de formas e tamanhos diferentes, com recados amarrados. Lembro-me da expressão, comum na umbanda, “Tá amarrado.” Seria para arrumar marido?, divaga meu lado machista. Graças alcançadas?

Por que cadeados? Talvez, aquele sociólogo que terá que me explicar o porquê de não haver filas de indigentes sofrendo no Hospital de Jesús possa também me esclarecer esse ponto.

Palacio de los Condes de Heras Soto
O Palacio de los Condes de Heras Soto, belo solar que hoje acolhe o Instituto de Ciencia y Tecnología del Distrito Federal (ICyTDF).

Passo rapidamente pelo ICyTDF, que, como disse, é uma fundação de amparo à pesquisa, voltado para pesquisas relativas a problemas da cidade do México, como saneamento básico, saúde, violência, trânsito etc..  A casa que abriga o ICyTDF é um solar magnífico (aprendo que é o Palacio de los Condes de Heras Soto) – dias depois, ganho de Claudia, minha colega jornalista mexicana e subdiretora de difusão da ciência do ICyTDF, um livreto simpático contando a história do palácio. Visito a redação. Só mulheres, umas quatro ou cinco (a profissão de jornalista é, cada vez mais, coisa de mulher).

Já está meio tarde. Vou para a primeira refeição mexicana. Opto por uma rede de restaurantes, Vips (ontem, um colega físico mexicano que está no Brasil conta-me que a rede é do hípermilionário Carlos Slim; tento confirmar a relação, mas não acho nada no Google). O gerente, Edgard, que acompanha todos os clientes às mesas, pergunta-me de onde sou. Faz festa ao saber que sou brasileiro. Volta à mesa umas três vezes, pelo menos. Na última, pergunta-me, desculpando-se pela ‘delicadeza’ do tema: “O que vocês brasileiros pensam de nós mexicanos? Somos vistos como traficantes, sequestradores, preguiçosos…?” Digo a ele que essa é a visão do cinema norte-americano de nós, latinos (depois da queda do muro de Berlim, quando os comunistas passaram a ser amigáveis, os latinos viraram os vilões do cinema norte-americano, na figura dos traficantes de drogas, sequestradores etc.; foram os atentados de 11 de setembro que nos tiraram do foco). Aproveitando minha cultura de desenhos animados, faço referência a Rapidino Gonzalez ou Ligeirinho (Warner Bros), ironia à suposta ‘lerdeza’ e ‘preguiça’ dos mexicanos, e a Zé Carioca (Walt Disney), para quem a vida é uma festa, referência ao não-compromisso dos brasileiros com temas sérios.

Edgard parece concordar.

Nas várias vindas de Edgard à minha mesa, fechamos a noite com futebol. Ele diz que, quando o México não vai à Copa ou é desclassificado, o Brasil é o time dos mexicanos. Lembro-me do final da Copa de 1970. Brasil 4 x 1 Itália. Jogávamos em casa. Lembro-me também do jogo, pouco depois da Copa, em agradecimento ao México. Acho que foi no Maracanã. Brasil 2 x 1 México. 1970: pergunto à minha mãe se não seria o caso de deixar o México ganhar. O argumento dela: perder de 2 a 1 para o Brasil, tricampeão, era um tipo de vitória. Mesmo assim, achei falta de educação. Lembro-me de que o goleiro Ado, do Corinthians (eu era corinthiano, até os 12 anos; depois, passei a torcer pela Associação Portuguesa de Desportos, a Lusa, infelizmente), meu ídolo na época, jogou no segundo tempo, substituindo o Félix. Fiquei orgulhoso quando ele fez uma boa defesa.

No México, resolvo ser América, que, frente a um empate de 1 a 1 contra o Monterrey, não passou para as finais. Meu colega Arturo é Chivas, de Guadalajara. Monterrey é o campeão de 2009.

Amanhã, Arturo me levará ao Museu de Antropologia.

[continua…]

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ

O jornalista viajou no final de novembro a convite do Institutode Ciencia y Tecnología del Distrito Federal y la Universidad Autónomade la Ciudad de México. O tema de sua palestra: ‘Jornalismo sobreciência: história, formação, linguagem e o erro’.