Há quatro anos, nenhuma das células-tronco já descritas pela ciência tinha apresentado potencial terapêutico tão promissor quanto as embrionárias humanas, isoladas em 1998 pelo grupo do pesquisador norte-americano James Thomson. A característica que faz dessas células tão auspiciosas é a pluripotencialidade, ou seja, a capacidade de se transformar em todos os tipos celulares de um indivíduo adulto.
Assim, a mesma célula-tronco que poderia ajudar no tratamento de um infarto ao se transformar em uma célula do coração, serviria também para recuperar neurônios da medula de um paraplégico, dando-lhe a esperança de voltar a andar.
No entanto, apesar da versatilidade dessas células já ser comprovada, sua utilização clínica, que começou a ser testada no ano passado, ainda é um sonho para muitos pesquisadores e pacientes.
Em 2007, porém, o mesmo James Thomson conseguiu, concomitantemente ao grupo japonês do pesquisador Shinya Yamanaka, transformar células adultas de pele humana em células pluripotentes (reprogramação celular).
Além de não serem derivadas de embriões, como as células-tronco embrionárias, as células conhecidas pelo acrônimo iPS (do inglês, induced pluripotent stem cells) poderiam ser derivadas do próprio paciente que as receberia, evitando o risco de rejeição em uma terapia.
Ou ainda, por possuírem o mesmo material genético do doador, se tornariam a ferramenta ideal para criar modelos de estudo de doenças, pois as células diferenciadas a partir das iPS seriam muito similares às encontradas nos pacientes.
Os primeiros estudos que comparavam as células-tronco embrionárias às células iPS analisavam tanto características fenotípicas – por exemplo, potencial de diferenciação –, quanto o padrão de metilação global do DNA, ou seja, a incorporação de grupamentos metil (radicais formados por um átomo de carbono ligado diretamente a três de hidrogênio) em regiões reguladoras de genes, o que dificulta, geralmente, a expressão dos mesmos.
A maioria desses estudos só confirmou a enorme semelhança que existe entre ambas as células pluripotentes, conferindo às células iPS o status de “alternativa perfeita” às células-tronco derivadas de embriões.
Mas teríamos de fato criado a máquina do tempo capaz de fazer uma célula adulta voltar a ser exatamente o que era quando fazia parte do embrião?
Nem tão parecidas assim
Diferentemente do que vinha sendo proposto, estudos recentes apontam cada vez mais diferenças marcantes entre as células-tronco embrionárias e as iPS, levantando a questão de quão completa e variável pode ser a reprogramação das células adultas ao estágio pluripotente.
Pela primeira vez, o grupo norte-americano liderado pelo pesquisador Joseph Ecker – e do qual o mesmo James Thomson faz parte – mostrou, em trabalho publicado na revista científica Nature na semana passada, que as células iPS não são tão parecidas com as células-tronco embrionárias quanto se pensava.
Ao avaliar o padrão de metilação – não mais de forma global, mas fazendo uma análise minuciosa de todo o genoma –, o grupo observou que as células iPS apresentavam regiões do DNA com padrões aberrantes em relação às genuínas células-tronco embrionárias.
Além disso, os pesquisadores observaram que as células reprogramadas guardavam, sob alguns aspectos, uma memória epigenética (referente às modificações na estrutura do DNA que ocorrem independentemente de alterações na sequência de seus genes) da célula adulta de origem.
Essas diferenças devem-se, provavelmente, à dificuldade de acessar e remodelar algumas regiões do genoma devido à organização estrutural do DNA anterior à reprogramação.
Ainda não se sabe como esses “erros” poderiam ser evitados. Mas é fato que eles existem e parecem ser intrínsecos ao processo de reprogramação, uma vez que o grupo testou diferentes linhagens de células iPS produzidas, inclusive, em diferentes laboratórios.
Viabilidade das células reprogramadas
Como o processo de geração de células iPS não é um fenômeno que ocorre naturalmente, é de se esperar que ele seja suscetível a imperfeições e pequenas variações, o que certamente não o torna menos fascinante e promissor. Mas até que ponto essa diferença inviabilizaria a utilização das células iPS?
Caso o mesmo James Thomson ou, quem sabe, outro pesquisador não consiga encontrar a solução para evitar esse tipo de aberração, uma alternativa seria investigar as consequências desses “erros”, e se elas inviabilizariam o uso dessas células. Padrões de metilação aberrantes podem ter grandes implicações, sim. Ou não.
Estudos que comprovem a funcionalidade e a não malignidade dessas células são complementares a este e podem ajudar a responder a questão.
As pesquisas com células iPS ainda são muito recentes. Estudos como esses, que ajudam na caracterização das células, são de extrema importância conceitual e, obviamente, para a definição de sua aplicabilidade na pesquisa básica e clínica.
Ainda é cedo para dizer se as células iPS se tornarão obsoletas. Por enquanto, as diferenças observadas entre as iPS e as células-tronco embrionárias não são suficientes para embargar os estudos de reprogramação.
No Brasil, ainda são poucos os grupos trabalhando com células iPS, apesar de o número de pesquisadores interessados em iniciar uma linha de pesquisa com essas células ser cada vez maior. Esperamos e acreditamos que trabalhos produzidos inteiramente no país sejam competitivos e possam colaborar para a geração de conhecimento na área.
Enquanto isso, uma prova de que as pesquisas com células iPS ainda são bastante promissoras e não perderam o encanto foi a publicação na revista Cell, no final do ano passado, do trabalho desenvolvido pelo pesquisador brasileiro Alysson Muotri na Califórnia.
O grupo do pesquisador utilizou as células iPS como ferramenta para modelar a Síndrome de Rett – um dos tipos mais graves de autismo –, recapitulando os estágios iniciais do desenvolvimento da doença e gerando um instrumento promissor para o rastreamento de fármacos, diagnósticos e tratamentos personalizados.
Em relação à aplicação clínica das células iPS, muito mais ainda precisa ser investigado. Foram necessários doze anos entre o isolamento das células-tronco embrionárias humanas e o início do primeiro estudo clínico com essas células. Certamente, nesse sentido, as iPS ainda estão só engatinhando.
Bruna Paulsen
Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias
Universidade Federal do Rio de Janeiro