A poesia é patrão caprichoso

Com apenas dois livros publicados, o primeiro em 2009, a mineira Ana Martins Marques, 35 anos, já construiu sólida carreira de poeta. A conquista de duas edições do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2007 e 2008, abriu-lhe as portas para o lançamento, pela editora Scriptum, de A vida submarina.

Não demorou para que editores de prestigiados jornais e revistas do país reconhecessem o talento e a sensibilidade dessa jovem escritora de Belo Horizonte e abrissem espaço para a revelação de uma nova e iluminada voz no cenário da poesia brasileira.

Da arte das armadilhasEm 2011, a Companhia das Letras apostaria na autora, incluindo Da arte das armadilhas em sua coleção de poesia contemporânea. O livro, elogiado por críticos, poetas e leitores em geral, recebeu em janeiro passado o Prêmio Biblioteca Nacional de Literatura, na categoria poesia.

Além de poeta, Ana é aluna do programa de pós-graduação em estudos literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e trabalha como redatora e revisora de textos técnicos na Assembleia Legislativa mineira.

Premida entre as obrigações profissionais e o desejo da escrita, por vezes lamenta não ter mais tempo para ler e escrever. Apesar disso, não desejaria dedicar-se exclusivamente à literatura. “A poesia”, como ela diz nesta entrevista, “é um patrão caprichoso”.

sobreCultura+: Como foi seu envolvimento com a escrita, especialmente de poesia? É algo já da maturidade ou esse ofício começou cedo em sua vida?
Ana Martins Marques: Comecei a escrever poesia ainda criança, em torno dos 9 ou 10 anos. Ainda tenho alguns desses primeiros poemas, graças à diligência de um tio que os datilografou e encadernou. Não eram bons, mas gosto de guardá-los porque eles testemunham um momento da descoberta de que era possível fazer coisas com as palavras, de que a linguagem podia ser um espaço de invenção, de diversão. Continuei escrevendo desde então, mas só fui publicar depois dos 30. Essa demora aconteceu por vários motivos: insegurança, timidez, talvez uma ideia muito alta do que era a literatura, o fato de eu estar afastada dos círculos literários, o desinteresse editorial pela poesia. Hoje, acho que foi uma vantagem.

Em que veículos você publicou seus primeiros poemas?

Poesia CHC
Poema de Ana Martins Marques na CHC.

Meu primeiro livro, A vida submarina, foi lançado em 2009. Antes disso, ganhei duas vezes o Prêmio Cidade de Belo Horizonte. Ainda assim, o caminho para a publicação não foi fácil. Enfrentei recusas e silêncios antes que a Scriptum, pequena editora de Belo Horizonte, publicasse o livro. Sou muito grata por essa acolhida, pelo modo afetuoso como trataram o livro de uma estreante completamente desconhecida. Não tenho certeza absoluta, mas possivelmente o primeiro poema que publiquei foi ‘Criança’, na revista Ciência Hoje das Crianças (clique na imagem ao lado para ler o poema).

Você já se sentiu tentada a escrever prosa de ficção ou chegou mesmo a escrever algo nesse gênero?
Pelo menos agora, não sinto vontade de escrever narrativas. Acho que não tenho fôlego para a ficção. A poesia é a minha forma de prestar atenção nas coisas. Já experimentei escrever pequenos textos ficcionais, mas talvez eles estejam mais próximos de poemas em prosa. Tenho a impressão de que algumas pessoas pensam na poesia como um estágio inicial a ser superado, uma espécie de doença juvenil, um trampolim para a escrita da prosa. Definitivamente não é o meu caso.

Como é o seu modo de criar poemas, o seu processo de escrita?
Não tenho muito método para escrever. Vou anotando palavras, frases, imagens, coisas que encontro nos livros ou na rua. Às vezes, anoto um verso que só vai encontrar lugar em um poema muito depois. É comum eu começar um poema pelo fim. Já vi relatos de poetas dizendo que para eles os poemas chegam prontos, como um presente. Acho que era Fernando Pessoa que dizia coisas como “aconteceu-me um poema”. Em geral, os poemas não “me acontecem”. Vão sendo feitos, aos poucos, de pedaços de coisas encontradas, inventadas, deslocadas, roubadas de outros…

Há uma declaração sua que deve se tornar célebre: “Não me enxergo como escritora, mas como alguém que escreve”. Que diferença há, em sua opinião, entre um escritor e alguém que escreve?

Mesmo logo após escrever um poema, tenho dúvida se serei capaz de voltar a escrever e frequentemente não me sinto à vontade para responder por aquilo que escrevi

Se não me engano, foi Blanchot que disse que, antes de sentar-se em sua mesa para escrever, o escritor não é escritor e não sabe se poderá sê-lo; e, mesmo depois de ter escrito, nunca sabe se será capaz de escrever novamente. No meu caso, mesmo logo após escrever um poema, tenho dúvida se serei capaz de voltar a escrever e frequentemente não me sinto à vontade para responder por aquilo que escrevi. Por isso acho tão estranho dar entrevistas ou falar sobre meus livros. Mas isso não impede que eu tenha fascínio por algumas figuras de escritores, sobretudo aqueles que se viam inevitavelmente como escritores e que lutaram para isso com todas as forças, como Kafka. Há algo de perturbador no modo como esses autores apostam tudo em um monte de palavras arranjadas no papel.

Jean-Paul Sartre dizia que o que faz alguém querer ler é a busca de algo que falta em sua vida, e Roland Barthes considerava que a necessidade de escrever surge quando o leitor ainda permanece com a sensação de falta de que falava Sartre. Já o escritor gaúcho Amílcar Bettega Barbosa diz que o que faz um leitor se tornar escritor é o desejo de fazer algo similar àquilo que lhe deu tanto prazer durante a leitura. O que é que te move para a escrita?
Talvez nesse aspecto eu esteja mais próxima do que diz Bettega. Não acho que seja a sensação da falta, mas a surpresa, a perturbação ou a alegria que eu encontrava na leitura que me impulsionaram para a escrita. A questão é como construir, a partir da memória e do esquecimento dessas leituras, um caminho pessoal, um entendimento do que a poesia pode ser, das forças que ela pode colocar em movimento.

Sua dissertação de mestrado, na UFMG, é sobre o escritor João Gilberto Noll. No ambiente acadêmico você prefere envolver-se com ficção?
É chato admitir isso, mas me sinto insegura para escrever sobre poesia. Talvez exista aí algum mecanismo inconsciente de defesa. Isso não é uma regra; ao contrário, tenho a impressão de que hoje boa parte da infelizmente escassa crítica de poesia é feita por poetas. Um dos livros mais interessantes sobre poesia que li recentemente, aliás, foi escrito por um excelente poeta: Poesia e crise, de Marcos Siscar. E há também a coleção ‘Ciranda da poesia’, publicada pela editora da Uerj e coordenada por Italo Moriconi, em que poetas escrevem sobre a obra de outros poetas.

Que tema (ou autor) você está estudando em seu doutorado?
Estou escrevendo uma tese sobre a incorporação de imagens fotográficas na literatura contemporânea. O autor central é o alemão W. G. Sebald [1944-2001], mas também analiso livros do brasileiro Bernardo Carvalho e do turco Orhan Pamuk. A ideia é investigar os efeitos produzidos pela presença na narrativa de fotografias e outras formas de imagens gráficas, como mapas, plantas e desenhos. Procuro demonstrar que as imagens funcionam como poderosos elementos narrativos, que permitem estabelecer conexões com o passado, apresentar indagações sobre a identidade e desencadear processos de memória. Também me interessa investigar de que modo o estatuto da imagem fotográfica é alterado por sua inserção em um texto literário e, por outro lado, de que modo a imagem altera o estatuto do texto. Tenho que concluir o trabalho neste semestre e estou apanhando bastante. Muita gente pensa que escritores têm facilidade para escrever, mas talvez seja o contrário. Escrever é muito difícil.

A criação poética e o envolvimento com a vida acadêmica são, no seu caso, atividades que se complementam ou são afazeres independentes?
Nem propriamente complementares, nem totalmente independentes. Lembro-me da frase célebre de Roland Barthes, de que se sentia um sujeito cindido entre duas linguagens: uma criativa, uma crítica. Mas é óbvio, lendo os textos de Barthes, que a crítica ali incorpora um elemento de criação. Acho que crítica e criação são atividades que mobilizam tempo e energia de formas diferentes, mas é impossível não haver algum trânsito entre elas, e é bom que seja assim. Nos dois casos, existe uma atividade de fundo, que é a leitura. Me sinto todo o tempo como se estivesse aprendendo a ler.

Pequenas navegações

Não há mais viagens longas
travessias
descobrimentos, bandeiras
índias não há mais

circunavegamos
nosso próprio corpo
desconhecido

não há mais animais monstruosos
sereias, dragões, canibais
grifos não há mais

partimos
diariamente
para as pequenas navegações

(Poema inédito de Ana Martins Marques)

Além de se dedicar à poesia e de estudar, você é redatora e revisora de textos técnicos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É possível dividir-se (ou multiplicar-se) igualmente por três ou uma dessas partes sai prejudicada?
No meu caso, a vida acadêmica acabou ficando em segundo plano. Mantenho um pezinho na universidade, mas, como percebi que não queria ser professora (sou tímida, tenho dificuldade para falar em público e para pensar ‘ao vivo’), acabei optando por outro percurso. Resolvi fazer o doutorado porque sentia falta de estudar e pesquisar e porque a universidade, com todos os seus problemas, ainda me parece o ambiente mais aberto à aprendizagem e ao pensamento. Mas nem sempre é fácil conciliar as coisas: escrevo bem menos poesia agora que estou envolvida com a escrita do doutorado, dedico-me menos à tese nos períodos em que tenho muito trabalho ou quando estou envolvida com a preparação de um livro e assim por diante.

No Brasil, quase sempre o escritor é também funcionário público, professor ou jornalista/editor. Isso valia para autores do passado e parece valer também para as novas gerações. Você acha que viver exclusivamente da escrita é um sonho de todo escritor ou isso pode, em longo prazo, tornar-se maçante?
Certamente são raros os escritores que podem se dedicar exclusivamente à escrita. Mesmo aqueles que fazem essa opção em geral precisam trabalhar também com atividades que estão no entorno da escrita, fazendo traduções, atuando no mercado editorial ou no jornalismo cultural ou trabalhando como professores. No meu caso, optei por um caminho que tem relação com a escrita e a leitura, mas está bastante distante da vida literária. Como todos aqueles que estão de certa forma premidos entre as obrigações profissionais e o desejo de escrita, frequentemente lamento não ter mais tempo para ler e escrever. Mas não desejaria me dedicar só à literatura; a poesia é um patrão muito caprichoso.

Todo leitor tem curiosidade de saber quais os autores preferidos de um escritor que despontou ou está despontando. Você poderia citar alguns?
Não sou uma leitora muito fiel. Tanto em A vida submarina quanto em Da arte das armadilhas há poemas dedicados ou escritos a partir de textos de outros autores (Drummond, Ana Cristina César, E. E. Cummings), que estão entre os meus preferidos. Gosto da ideia de uma escrita que deixa ver os rastros da leitura. Mas há também autores que estão entre os meus preferidos, como Kafka e Borges, e que não entram diretamente no que escrevo. Ultimamente, tenho lido bastante alguns poetas poloneses: Joseph Brodsky, Zbigniew Herbert e Wislawa Szymborska. Ando entusiasmada também com o português Manuel de Freitas e com o novo livro de Sérgio Alcides, Píer.

Outra curiosidade do leitor é querer saber de um escritor (que despontou ou está despontando) que colegas que ainda não despontaram merecem ser reconhecidos em âmbito maior. Você teria, também nesse caso, nomes a citar?
Os autores que vou citar já estão na roda e são certamente conhecidos de quem acompanha a poesia brasileira contemporânea. Um deles é Bruno Brum, que lançou em 2011 Mastodontes na sala de espera, um livro cheio de ecos e restos, às vezes incorporando elementos visuais, às vezes com um humor inusual em livros de poesia. Outra jovem poeta de que gosto é Mariana Botelho, autora de O silêncio tange o sino, um livro que não é bonito só no título, com poemas breves, de extrema delicadeza e precisão. Outra poeta que merece atenção é Mônica de Aquino; ela tem um lindo livro, Sístole, e sei que ela tem uma gaveta preciosa, à espera de publicação.

No Brasil, várias editoras têm investido em e-books, os livros eletrônicos. A Amazon, após indicar em seus informativos o lançamento do volume e-Quintana, do poeta Mário Quintana, vendeu quase 300 exemplares em uma semana (um número expressivo, em se tratando de poesia, e de Brasil). O que acha desse tipo de realização? Você gostaria de se ver um dia em um e-Ana?

Acho que a poesia, por sua tendência à concisão, à imagem, presta-se bem aos formatos eletrônicos, talvez melhor do que os outros gêneros

Acho que a poesia, por sua tendência à concisão, à imagem, presta-se bem aos formatos eletrônicos, talvez melhor do que os outros gêneros. Como leitora, não consegui ainda aderir com muito entusiasmo ao e-book, embora leia bastante poesia na rede. Uma coisa que me incomoda é que a parte gráfica, visual, parece ainda muito prejudicada nos livros eletrônicos, o que é um contrassenso. Mas, olha só, já existe um e-Ana: desde 2012 Da arte das armadilhas está disponível em formato digital.