A morte do antropólogo carioca Gilberto Velho, aos 66 anos, na madrugada de sábado (14), vem gerando manifestações de seus colegas e amigos de profissão. Considerado por muitos o mestre da antropologia urbana brasileira, Velho morreu dormindo – as primeiras notícias dão conta de um acidente vascular cerebral. Ele era titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ.
Autor de diversos livros, como o clássico A utopia urbana: um estudo da antropologia social, de 1973, e artigos, além de profícuo organizador de obras, o antropólogo deixa – é o que apontam os tantos depoimentos de extremo pesar – um legado de dedicação, generosidade e, também, bom humor.
A antropóloga Karina Kuschnir escreveu texto em homenagem ao seu ex-orientador de mestrado e doutorado em que chama a atenção, justamente, para o gênio de seu amigo de anos. Ela diz:
“Aos jovens alunos do PPGAS [Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social] , [Velho] cobrava: ‘Já aprenderam a cantar o hino da antropologia?’ E entoava, operisticamente: ‘Estranhar, relativizar…'”
O antropólogo Marco Antonio Gonçalves, cujo trabalho deve muito ao legado de Velho, deu depoimento, por e-mail, à CH On-line:
“Tive o privilégio de fazer o curso de Antropologia Urbana ministrado por Gilberto Velho quando ainda era aluno de doutorado no Museu Nacional.
Aprendi, também, a admirá-lo como professor. Seu curso era um exercício pleno desta noção de sociabilidade. Gilberto instigava, estimulava, provocava a participação de todos dando a impressão de que construímos um curso do mesmo modo que uma sociedade [é construída]: com concordâncias, discordâncias, diálogos. Aprendi não apenas os temas e os problemas das sociedades complexas mas, sobretudo, como compreender a complexidade da sociedade a partir de sua sofisticada análise da obra de Georg Simmel apontando, sempre, para a importância da sociabilidade como problema fundamental da vida social.
Ao terminarmos o curso, como era de praxe, o celebramos com um copioso almoço, organizado pelo mestre, na churrascaria Plataforma.”
Academia Brasileira de Ciências
Em 2000, Velho entrou para a Academia Brasileira de Ciências, até então um território eminentemente das ciências exatas e naturais. Quem chama a atenção para esse fato é o cientista político Renato Lessa, diretor do Instituto Ciência Hoje.
Lessa ainda explica, no vídeo abaixo, a relação de Velho com o Instituto e lembra que, por anos, o antropólogo fez parte do conselho científico da revista (o nome dele está no expediente da primeira edição, de 30 anos atrás) – uma proximidade com o ICH análoga à de seu irmão, o também antrópologo Otávio Velho, que participou do conselho editorial e foi editor da CH.
Por e-mail, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, colunista da CH On-line e companheiro de Velho no Museu Nacional, também fez questão de deixar registrada a importância do amigo de profissão e confirmar que, em breve, retornará a escrever sobre a fundamental contribuição de Velho para o entendimento das dinâmicas urbanas do Brasil.
Fique, a seguir, com as palavras do nosso colunista:
“Gilberto Velho foi meu professor desde 1973, ano em que entrei no mestrado do Museu Nacional.
Ministrava o curso básico de Antropologia Urbana e lançava naquele mesmo ano o seu livro de estreia, A utopia urbana. Já era, no entanto, um intelectual pleno e poderoso, ligado à antropologia norte-americana, particularmente aos herdeiros da Escola de Chicago e aos interacionistas simbólicos (Erving Goffman e Howard Becker).
Seus interesses no chamado comportamento desviante tornaram-no um interlocutor importante da psiquiatria modernizante e da psicanálise naqueles anos de intensa psicologização da sociedade brasileira.
Seus interesses nas dinâmicas urbanas suscitaram um enorme leque de pesquisas de alunos e orientandos, que mapearam cuidadosamente os mais diversos aspectos do caleidoscópio metropolitano brasileiro. É preciso lembrar que àquela altura, em plena ditadura e milagre econômico, as transformações urbanas fervilhavam, apresentando contornos ideais para uma investigação sistemática e de longo curso – tal como também se propusera a Escola de Chicago.
Voltei a trabalhar mais intensamente com ele em meu doutorado – e fui o primeiro de seus doutorandos a defender tese. Não era um trabalho típico de antropologia urbana, embora o campo fosse na cidade. Mas era próximo dos interesses de Gilberto pela dedicação aos temas da construção social da pessoa e das perturbações mentais.
Estivemos ambos ligados ao Instituto de Psiquiatria da UFRJ, nos tempos em que lá se cultivava uma discussão abrangente sobre as condições sociais do adoecimento psíquico. Juntou-nos também o comum interesse na obra de Louis Dumont (que compartilhamos com Roberto DaMatta) e sua análise da ideologia do individualismo.
O mundo urbano, suas conformações e desvios, era um campo privilegiado para o estudo dos processos de ‘individualização’ – que foi tratado recorrentemente por Gilberto em toda sua carreira.
Combinando o estruturalismo de Dumont à tradição fenomenológica de Georg Simmel e de Alfred Schutz, ele tratou sobretudo dos projetos de vida, das trajetórias sociais que constituíam e instituíam os indivíduos, em especial no âmbito das camadas médias.
É o que posso dizer hoje, embora houvesse tanto mais a dizer.”
A redação