Amor e ódio na natureza

 

O livro O tapete de Penélope, de Walter A. Boeger, focaliza um alvo interessantíssimo, pouco explorado pela literatura de divulgação científica. Ele se dirige ao público que não é especializado em biologia e que, portanto, não reconhece o que venha a ser um acantocéfalo à primeira vista.

É mais comum nesse gênero de literatura termos exemplos de uma espécie em particular ou mesmo de um grupo de espécies intimamente aparentadas, e sua história evolutiva. Mas, como artrópodos e protistas, de maneira ampla, podem ter enfrentado os percalços evolutivos de maneira associada?

Este é exatamente o foco desse livro, que busca corajosamente enfrentar um tema complexo, dirigindo-se a um público leigo e fazendo uso de uma erudição que exige algo do leitor, a começar pelo próprio título.

A empreitada corajosa é, em certa medida, alcançada, ao remeter o leitor a um grande leque de contextos biológicos que nos expõem os limites entre os relacionamentos de amor e ódio na natureza. É surpreendente ler, na escrita de um especialista em parasitologia, como a linha divisória entre o bem e o mal no mundo biológico é tênue. Até mesmo um biólogo se surpreenderá ao ver como o conceito de parasita comporta diferentes interpretações, que nem mesmo na Grécia Antiga – de onde o conceito foi originalmente tomado – seria possível imaginar.

Refinamento mecânico

A publicação deste texto é fruto de uma parceria entre a CH On-line o Jornal de Resenhas. A cada nova edição do jornal, reproduziremos aqui uma de suas resenhas.

Uma lombriga é, certamente, um parasita indiscutível, mas Walter Boerger nos faz pensar como ela conseguiu ir parar em nosso intestino, com o sucesso adaptativo que isso representa – para ela, pelo menos.

As pré-adaptações foram passos indispensáveis, sem dúvida, pois sem uma capa protetora seria impossível suportar a alquimia dos processos digestivos que ela e os demais membros de seu grupo devem enfrentar nos intestinos que frequentam. Estes, por sua vez, podem ter sido subprodutos de um refinamento mecânico que evitava os dentes e garras da natureza.

Mas, para além de lombrigas, o livro nos remete a todas as células dos animais e vegetais. Nesse mundo não teríamos nem lombrigas, nem humanos, se não houvesse a possibilidade de associação intracelular que permite aproveitar a glicose de maneira eficiente, com auxílio do oxigênio. Essa possibilidade está disponível há relativamente pouco tempo, no escopo evolutivo dos seres vivos, e tudo leva a crer que a associação entre diversos seres vivos tenha proporcionado essa possibilidade original há algo como 1,6 bilhão de anos.

A própria existência de gás oxigênio foi resultado de outra série de associações entre diferentes organismos. Mas o fato é que essas associações, de tão eficientes, deixaram marcas que podem ser reconhecidas até hoje, desde a folha de alface até nosso dedo, ou mesmo as células de uma lombriga.

Não se trata de assunto fácil, e o livro adverte sobre isso. A começar pela menção aos acantocéfalos, que aparece já à página 20, em um esquema, o leitor se obriga a buscar uma conexão à internet para esclarecimentos, desde os esquemas que aparecem no livro até a terminologia específica que é utilizada, por vezes de maneira inadvertida.

O leitor vai encontrar frases como “os apicomplexos apresentam um plastídeo não funcional que expõe seu passado fotossintetizante!”, na qual a exclamação, para ser entendida, deverá ser fruto de pesquisa adicional. O glossário do próprio livro é tímido a ponto de nada dizer dos acantocéfalos e pouco auxilia na compreensão de certas exclamações ou mesmo certas aspas.

O livro se detém em certos exemplos e em alguns formalismos que a publicação não deveria buscar, já que se pretende voltada para um público não especializado. Por exemplo, o texto afirma que o termo técnico utilizado para descrever certo tipo de relação entre parasita e hospedeiro é “especialização”. Poucas linhas adiante, diz que, em parasitologia, a especialização é, na verdade, designada pela expressão “especificidade parasitária”. A especificidade léxica diz pouco ao público alvo da coleção, que precisaria apenas entender melhor de que maneira parasita e hospedeiro podem desenvolver relações tão íntimas, a ponto de lembrar certos casais apaixonados.

A salamandra e o predador
Em contrapartida, quando se trata de exemplos, inclusive de casos com vasta literatura e muito divulgados, a abordagem é excessivamente resumida e genérica. É o caso da salamandra norte-americana altamente tóxica e de seu predador, uma serpente que tem resistência à sua toxina. Nem mesmo se diz onde essa salamandra e seu predador ocorrem, havendo apenas a menção a seus nomes científicos (Taricha granulosa e Thamnophis sirtalis), o que decerto significa pouco para o público leitor.

O mais interessante não é dito no livro: a resistência à toxina prejudica a mobilidade da serpente; assim, quanto mais resistente ao veneno, mais vulnerável aos seus próprios predadores ela fica. Portanto, não se trata apenas de um equilíbrio entre a salamandra e da serpente, mas também dos predadores da serpente. Em síntese, o exemplo é excelente para o tema do livro, mas passa quase desapercebido. O tapete de Penélope poderia ter uma tessitura mais complexa, para benefício de seu próprio argumento.

Encontramos nesse pequeno livro um tema interessante e assuntos que poderão abrir horizontes muito amplos, mas certamente demandará leituras de apoio e explicações adicionais que possam mostrar ao leitor como um assunto complexo pode ser entendido com certa profundidade mesmo por um público que não costuma falar de acantocéfalos e pogonóforos com naturalidade. Tratar assuntos complexos com simplicidade não é fácil e O tapete de Penélope é um exemplo disso.

O tapete de Penélope – o relacionamento entre as espécies e a evolução orgânica 
Walter A. Boeger
São Paulo, 2009, Editora da Unesp
108 páginas – R$ 15,00
 (11) 3242-7171 

Nelio Bizzo
Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo
30/07/2009

* Texto publicado originalmente no número 3 do Jornal de Resenhas.