Depois de 1922, desenvolvemos no Brasil uma tolerância que contempla um vasto número de manifestações culturais que, por mais acanhadas, podem ser vistas como um indício de nossas raízes e de uma identidade sempre procuradas. Essas manifestações constituiriam, por assim dizer, o material de base da elaboração estética dos modernos que nos conduziriam ao nosso cerne, aquele capaz de receber o selo do suspiro bandeiriano: Tão Brasil. Nesse mesmo movimento, foram postos de lado ou banidos, por exemplo, os comentários mal-humorados e pessimistas dos Silvios Romeros e dos Monteiros Lobatos, que combinavam nos seus trabalhos a estigmatização do atraso nacional e o apelo ao patriotismo.
A ênfase dada pela elaboração intelectual era, portanto, a busca de uma síntese, que assumia quase que obrigatoriamente uma dimensão étnica, como na obra de Gilberto Freyre; síntese que nos identificasse, nos redimisse e de forte conotação narcisista. Afinal, como ironiza Hermano Viana na revista Cult (2004), “mesmo o nosso internacionalismo acaba se transformando em antropofagia”.
Pode-se dizer, sem muito risco, que a obra de Ariano Suassuna se inclui nessa linha de desenvolvimento. Assim, ele procura identificar uma origem e uma tradição reais da cultura brasileira, pelo menos em suas manifestações nordestinas, que, por um lado, ele vai perseguir (quase como uma provocação) até os seus primórdios, nas manifestações rupestres de um homem brasileiro do Paleolítico; e, por outro, a situa geográfica e historicamente como advinda de uma tradição medievo-ibérica, se estendendo talvez até a península italiana de Dante e Petrarca.
Esse amálgama de matéria-prima e de criação artística – assinalado por um gesto normativo do autor –, nas quais ele também inclui as contribuições dos povos indígenas e africanos, ter-se-ia constituído em toda uma civilização cujos valores iriam servir de base a uma arte brasileira e alimentariam uma civilização autenticamente nossa.
Haveria uma comunicação permanente entre a cultura popular e a cultura erudita, cabendo, no entanto, aos intelectuais “a organização consciente” da matéria poética, parafraseando Mário de Andrade na sua ‘Carta aberta pra João Alphonsus’, em A lição do amigo – Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade (1982). Em Ariano, essa organização tomou uma forma abrangente e programática – a de um movimento estético, o armorial – que constitui quase uma liturgia; e eu utilizo o termo também para realçar algo nem sempre lembrado: a presença da religião, ou mais precisamente do catolicismo, na sua obra.
Há poucos anos, em uma das suas aulas-espetáculo, ouvi-o dizer que a sua poesia – aliás, pouco conhecida, mas de alta qualidade – constituiria a matriz principal de onde ele teria derivado todo o seu trabalho. Nela, o fervor místico assume muitas vezes uma forma solene, ritualizada, um tom profético que adota uma profusão de símbolos imagéticos (O Sol, a Lua, o Rei), combinando temas como a Morte e o Destino (frequentemente em maiúsculas) com a saga nordestina.
Essa maneira contrasta com – embora também complemente – as manifestações mais alegres, singelas e coloridas do catolicismo popular, que o nosso autor incorpora amiudadamente na sua prosa: o culto a Nossa Senhora e os embates do homem com o Diabo, presentes, por exemplo, no Auto da Compadecida.
No começo dos anos 1950, o antropólogo britânico Richard Hoggart encontrou um jovem pesquisador americano que se identificava como professor de alguma coisa denominada por ele “American studies”.
– O que é isso?, perguntou Hoggart.
– Um novo campo de pesquisa e de ensino interdisciplinares –, foi informado.
– Isso é novidade? –, reagiu Hoggart.
– Sim, combina o estudo de história e literatura –, retrucou o jovem.
– Mas, nós fazemos isso há um tempão –, insistiu Hoggart, que não imaginaria na Inglaterra uma disciplina com o nome de “Estudos ingleses”.
– Claro, mas nós olhamos a sociedade americana como um todo – o conjunto da cultura, em todos os níveis: erudito e popular.
O inglês, que acabara de publicar o seu The uses of literacy, um trabalho pioneiro sobre a cultura da classe operária britânica, não se deixou impressionar. Diante do seu silêncio, o seu interlocutor disse irritado:
– Mas, você não está entendendo, I believe in America! (‘Believing in America’, Boston Review A Political and Literary Forum, 2003).
Em uma anedota aparentada: certa feita, Ariano falou-me da impressão que lhe causara o discurso de Dostoievsky na famosa inauguração do monumento a Puchkin e que constituía um monumento de exaltação da língua e da nação russas. Concordei obviamente sobre a grandeza de Dostoievsky, mas externei minha simpatia política pelos ocidentalizantes – Herzen, Belinsky e Turgenev – ao que ele retrucou: – Mas eu prefiro os populistas.
‘Nenhum Brasil existe’
Durante o governo Médici (1969-1974), quando para os exilados não havia praticamente esperança alguma de retornar ao Brasil, eu vi meu pai [Miguel Arraes] na Argélia pesquisando diligentemente em livros de história para escrever um documento político – um opúsculo que circularia em versão mimeografada – que ele viria a intitular, não sem alguma malícia (por causa do livro homônimo de Lênin), A questão nacional. Como epígrafe, pinçou seletivamente alguns versos de um poema de Carlos Drummond de Andrade, ‘Hino nacional’, que se encontra no Brejo das almas:
Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
Por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Durante anos identifiquei essa seleção de versos com o poema inteiro e segui o que parecia ser a intenção de meu pai: a de ver neles um apelo pungente e patriótico: se nenhum Brasil existe, é preciso, portanto, inventá-lo. Se brasileiros não há, é preciso convocá-los.
Recentemente, deparei-me com esse julgamento de Silviano Santiago: A convivência com a realidade provinciana torna cego o observador e empobrece o analista. Por mais nocivo que seja o despaisamento, ele sempre alarga o raio de visão do intelectual para que enxergue de maneira provocadora ou irônica o que não consegue ver na naturalidade do dia a dia. No mais, [deve-se] ir direto a este verso definitivo de Brejo de almas, onde a negação e a pergunta iconoclastas alertam para os perigos do ufanismo e denunciam os seus limites na década de 1920: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” (‘Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade’, Carlos Drummond de Andrade, poesia completa, 2002).
Ao reler o poema inteiro, concordei com Silviano: o tom irônico e dissolvente permeia o conjunto tão hábil e patrioticamente depurado na epígrafe do meu pai. E, no entanto, há Drummond para todos, porque a veia triste e melancólica dos versos do seu ‘Hino Nacional’ aponta sem dúvida também para uma nostalgia do que deveria existir e não há.
A questão nacional, hélas, permanece: ela não poderá ser simplesmente eliminada da política nem tampouco desaparecer do universo da criação artística e literária. Talvez, porque, a exemplo do professor americano que “acreditava na América”, são muitos ainda a acreditar no Brasil. Quanto a Ariano Suassuna, nós já sabemos, ele sempre acreditou.
José Almino de Alencar
Centro de Pesquisa
Fundação Casa de Rui Barbosa/ RJ
Texto originalmente publicado no sobreCultura 17 (outubro de 2014).