Arsênio, ETs e polêmica na internet

Na semana passada, o anúncio da Nasa de uma coletiva de imprensa para “discutir uma descoberta astrobiológica que irá impactar a busca por evidência de vida extraterrestre”, como propagandeou a própria agência espacial norte-americana, causou burburinho na internet.

Será que a Nasa teria descoberto vida em outro planeta? Depois de muitas especulações, fica bem claro que a resposta é não

Muitos se perguntavam: será que a Nasa teria descoberto vida em outro planeta? Eis que, depois de muitas especulações, da coletiva de imprensa na Nasa e da publicação do artigo que descreve o achado na página da revista Science na internet, fica bem claro que a resposta é não.

A descoberta, recebida ainda assim com surpresa e entusiasmo, foi outra: cientistas da Nasa e de outras instituições norte-americanas encontraram uma bactéria que consegue usar arsênio, elemento considerado altamente tóxico, em substituição ao fósforo, para sustentar seu crescimento, como noticiamos aqui na CH On-line. O assunto também é o tema deste mês da coluna de Jerry Borges.

Divulgada amplamente na grande imprensa, a pesquisa foi, a princípio, bem recebida e comentada na maioria dos meios. Afinal, pela primeira vez, um ser vivo seria capaz de substituir um dos seis elementos essenciais à vida – carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre e fósforo.

Críticas de todos os lados

Mas não demorou muito para as críticas surgirem. Primeiro caíram em cima da Nasa e de alguns jornalistas, que teriam divulgado o estudo de forma um tanto sensacionalista, falando em evidências de vida extraterrestre e coisas do tipo quando, na verdade, a vida em questão havia sido achada no bom e velho planeta Terra.

Ao tomar conhecimento do feito, um número expressivo de pesquisadorescomeçou a questionar os métodos e resultados da pesquisa

Mas as críticas não pararam por aí. Ao tomar conhecimento do feito, um número expressivo de pesquisadores começou a questionar os próprios métodos e resultados da pesquisa, colocando em xeque a sua validade.

Alguns levantaram dúvidas sobre o procedimento usado pela equipe para purificar o DNA da bactéria, que, segundo o estudo, teria incorporado arsênio à sua estrutura; outros especialistas apontaram que testes importantes que deveriam ter sido feitos não foram.

Uma das críticas mais ásperas veio da bióloga Rosie Redfield, da Universidade de Colúmbia Britânica, no Canadá. Por meio de um post em seu blogue de pesquisa, amplamente lido e comentado, Redfield questionou uma série de procedimentos do estudo, incluindo a possibilidade de contaminação do DNA analisado.

Segundo a bióloga, custariam dois dólares e levariam dez minutos para preparar para análise o DNA que supostamente incorporou arsênio, o que aparentemente não foi feito na mostra usada como prova da super-habilidade da bactéria em incorporar um elemento tão tóxico.

Diante de tantas críticas, Carl Zimmer resolveu apurar melhor o caso, entrando em contato com 12 pesquisadores da área. O resultado das entrevistas rendeu um sólido texto publicado na página virtual Slate.com, com o duro título “Este artigo não devia ter sido publicado”.

No texto, Zimmer diz que os pesquisadores, quase unanimemente, contestaram os dados do estudo. De acordo com a maioria deles, o estudo da Nasa não traz evidências de que a bactéria é capaz de usar arsênio no lugar do fósforo e, portanto, não deveria ter sido publicado da forma como foi.

A doutrina da revisão por pares

As críticas não foram bem recebidas e também não foram rebatidas pela Nasa e pelos autores do estudo. Como bem reportou e criticou David Dobbs na revista Wired, eles simplesmente se abstiveram de debater questões científicas fora do altar dos periódicos científicos e da revisão por pares.

“Aparentemente, ideias são validadas (ou não) com base não em seu conteúdo, nem mesmo na reputação de seu autor, mas em função de onde é publicada”, alfinetou Dobbs.

Capa da revista Science
Capa da edição de 03 de dezembro da revista Science. Estudo publicado nesse prestigioso periódico científico internacional levanta discussões sobre os mecanismos usados para validar resultados de pesquisas.

O curioso é que o mesmo porta-voz da Nasa que anunciou a coletiva de imprensa para “discutir uma descoberta astrobiológica que irá impactar a busca por evidência de vida extraterrestre”, Dwayne Brown, se defendeu dizendo que o artigo tinha sido revisado por pares e publicado em um dos mais prestigiados periódicos científicos. Portanto, os autores do estudo não iriam responder às críticas. Ele disse ainda que a Nasa não considera apropriado debater ciência usando a mídia e blogues.

Ou seja, quando é do seu interesse chamar a atenção de jornalistas e do público para os estudos realizados pela agência espacial, apelando até mesmo para o tão criticado sensacionalismo, a mídia é uma excelente ferramenta. Mas quando a validade dos estudos é questionada, aí a mídia não serve, não pode, não deve…

Dobbs ficou tão injuriado que falou em “pensamento pré-iluminista” e na “Igreja do Periódico Revisado por Pares”. É difícil não lhe dar razão.

O acontecimento aqui relatado é um ótimo caso para se pensar o modocomo a ciência é feita, divulgada e debatida nos dias e com asferramentas de hoje

Fato é que, independentemente do que acontecer com a pobre da bactéria que vive em condições adversas no lago Mono, o acontecimento aqui relatado é um ótimo caso para se pensar o modo como a ciência é feita, divulgada e debatida nos dias e com as ferramentas de hoje.

Estudos com grande repercussão serão cada vez mais avaliados e julgados, formal ou informalmente, pelos pares, quer queira o alto clero da comunidade científica ou não.

Cabe a nós também, jornalistas de ciência, refletirmos e repensarmos a fórmula tradicional de se fazer jornalismo científico. Devemos continuar nos baseando tanto em press releases e artigos embargados de periódicos, entrevistas com os autores principais, comentários de um ou dois outros pesquisadores e na preocupação com o relógio e com os outros veículos que podem te dar um furo?

Ainda não é tão comum um assunto científico dar tanto pano pra manga, mas claro que isso iria acontecer na primeira semana de trabalho da nova editora da Ciência Hoje On-line. Vou levar pelo lado positivo e tentar enxergar o acontecimento como as boas-vindas ao novo desafio!

 

Repercussão no Brasil
As famosas bactérias foram amplamente comentadas na mídia e na blogosfera brasileira, que tem estado bastante atenta a esse tipo de acontecimento. Blogues como Brontossauros em meu Jardim, Geófagos, Gene Repórter e Quiprona travaram debates interessantes sobre o tema. Vale a leitura!


Carla Almeida
Ciência Hoje On-line