Arte e conectividade

No salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, um grupo de aproximadamente 20 pessoas operava computadores, utilizava softwares de programação, instalava sensores em plantas, cata-ventos… Sensores em plantas? Cata-ventos?

“O conceito de hiperorganismo nos ajuda a pensar as obras e os objetos criados pelos artistas no contexto contemporâneo das redes”

A cena, ocorrida em outubro último durante o Simpósio Internacional de Pesquisa em Hibridações e Arte Telemática, passa a fazer sentido ao se conhecer o objetivo do evento – discutir (e colocar em prática) a interseção entre arte, ciência e tecnologia.

O Hiperorgânicos – como é chamado o simpósio – surgiu em 2010, idealizado por Guto Nóbrega, professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ). “O prefixo ‘hiper’ se refere à questão da conectividade, de um universo contemporâneo ‘hipermediado’; já o termo ‘orgânico’, a um possível modelo para a experiência artística relativa aos processos que criamos”, conta Nóbrega, em entrevista ao sobreCultura +, durante a terceira edição do evento. Ele acrescenta: “O conceito de hiperorganismo nos ajuda a pensar as obras e os objetos criados pelos artistas no contexto contemporâneo das redes. No Hiperorgânicos, o nosso foco é justamente este. São vários convidados, artistas ou não, que têm as suas obras interconectadas para fazerem parte de uma estrutura maior, coletiva”.

Os três primeiros dias do evento foram dedicados às atividades do laboratório aberto, quando foi feita a montagem das obras e o estabelecimento das conexões. O principal objetivo era fazer com que as informações provenientes de cada trabalho pudessem ser utilizadas por outros artistas, quer estivessem no salão Portinari ou não.

Como se dá essa interação entre obras? Um exemplo fictício, porém simples: imagine que um instrumento musical produz uma série de sons. A proposta é que eles sejam convertidos em dados numéricos e compartilhados através da rede. Um servidor irá receber essas informações e disponibilizá-las para quem estiver conectado, que poderá fazer com que os dados também façam parte da sua obra. Caso o instrumento passe a emitir um som mais agudo, por exemplo, isso poderá levar a uma mudança de cor ou acionar a exibição de vídeos em outra obra. Isso é possível graças à mediação dos artistas, que se valem da linguagem de programação computacional para produzir seus trabalhos. Um dos softwares utilizados foi o Processing, criado especificamente para trabalhos de arte.

Paola Barreto, doutoranda em Artes Visuais na EBA/UFRJ, participou do Hiperorgânicos com a experiência híbrida ‘Cine plant‘, em que uma planta é conectada a sensores que captam impulsos elétricos. Esses sinais são convertidos em dados que acionam a edição de imagens de vídeo. Estas, por sua vez, são projetadas nas folhas da planta. “No Hiperorgânicos, a ideia é que esses dados saiam desse microuniverso e entrem na rede para serem utilizados pelo coletivo e possam ativar processos em qualquer lugar”, explica Nóbrega.

Assista à experiência ‘Cine plant’, de Paola Barreto

 

Jardim gráfico

Outro trabalho levado para o evento foi ‘Um jardim para Epicuro’, da artista Cinthia Mendonça. No projeto original, um jardim real produz dados de temperatura, luminosidade e umidade que são captados por sensores e enviados via rádio para o software Processing, que os utiliza para gerar um jardim gráfico, abstrato.

“O trabalho busca promover um encontro de saberes distintos que convergem simbolicamente para a criação de um jardim”, diz. “Não só de conhecimentos das áreas exatas e humanas, mas também de saberes populares, que se reúnem no ‘saber fazer’ de cada um que participa da montagem do jardim. Da filosofia à agricultura, da física à programação e à arte.”

No Hiperorgânicos, de modo diferente do projeto original, os dados utilizados não eram provenientes de um jardim real. O jardim gráfico era alimentado por dados produzidos em outros trabalhos, como os sinais elétricos da planta de Paola Barreto, sons produzidos em Curitiba pelo artista Glerm Soares e valores de temperatura e umidade relativa do ar de Ondina, em Salvador, captados durante o evento e enviados para o Rio de Janeiro pelo grupo Ecoarte.

“Isso deu ao trabalho uma dinâmica bem diferente”, conta Cinthia. Ela explica que os grupos de dados produzidos a partir do jardim real têm variação mais lenta, pois dependem das variações reais de temperatura, umidade e luminosidade. Por outro lado, os dados numéricos recebidos via internet durante o evento variavam em ritmo mais acelerado, o que fez com que os componentes do jardim gráfico se movimentassem e mudassem de forma com mais velocidade do que no projeto original.

Conheça o projeto ‘Um jardim para Epicuro’,
de Cinthia Mendonça

 

Híbridos

O último dia do Hiperorgânicos foi dedicado a discussões sobre aspectos técnicos, artísticos e políticos da interseção entre arte, ciência e tecnologia. Um dos convidados para falar no simpósio, Ivan Henriques, apresentou o trabalho ‘Jurema action plant’ (JAP). O projeto foi desenvolvido por ele durante o mestrado em Arte e Ciência na Academia Real de Artes da Holanda, concluído em 2010. “Pesquisei a interação entre organismos vivos e máquinas, procurando uma harmonia entre eles”, diz.

Para desenvolver a JAP, colaboraram o V2 – Institute for the Unstable Media – e o biólogo holandês Bert van Dujn, especializado em biodinâmica e eletrofisiologia. O projeto é um híbrido entre a planta Mimosa pudica, popularmente conhecida como dormideira, e uma máquina – mais especificamente, parte de uma cadeira de rodas elétrica.

Quando a planta é tocada por alguém, isso leva a uma variação nos sinais elétricos do vegetal, que é captada por sensores. Esse sinal é amplificado mil vezes e faz mover o conjunto máquina-planta. Além disso, a JAP também tem sensores infravermelhos na parte dianteira e traseira, o que possibilita que desvie de obstáculos e consiga perceber as pessoas à sua volta.

Veja o trabalho ‘Jurema action plant’,
de Ivan Henriques

Henriques explica que se uma pessoa tocar a planta pela frente, o primeiro movimento da JAP será em direção a ela. No entanto, se a pessoa continuar em seu caminho, a máquina está programada para desviar e irá se mover para trás e para a esquerda. Se após esse movimento, ainda encontrar obstáculos, continuará procurando um lugar livre, girando 360 graus.

“Depois de apresentá-la nas primeiras exposições, ficou claro que, embora a biomáquina não se assemelhe a um ser humano, os visitantes criavam uma relação de afeto com ela”, conta.

Na rede Ipê

O Hiperorgânicos III marcou a conexão da Fundação Nacional de Artes (Funarte) a uma rede de alta capacidade administrada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), a rede Ipê. Além da sede no Rio de Janeiro, as representações da Funarte em Minas Gerais, Brasília e São Paulo também passaram a integrá-la, o que possibilitará novos experimentos em arte e tecnologia.

“Antes os artistas precisavam de galerias para expor seus trabalhos, hoje precisam também de espaços virtuais e públicos”, conclui Malu Fragoso, organizadora do evento ao lado de Guto Nóbrega.

Joyce Santos
Ciência Hoje/ RJ