Beijo coletivo

Durante quase todo o segundo semestre do ano passado, o portal de notícias IG publicou em quadrinhos a saga de uma gangue de garotos que desenvolvem poderes especiais na adolescência. O rito que marca a aquisição desses poderes é o singelo e quase sempre marcante primeiro beijo. Veiculado semanalmente, O beijo adolescente previa outros capítulos. Termina justamente num momento de epifania do personagem principal: um garoto de 12 anos que acaba de tomar consciência plena de sua força.

Veiculada semanalmente, a história previa outros capítulos, mas não houve verbas para a continuação

Um problema: o IG não pôde custear a continuação da série, tampouco prosseguiu com o seu projeto editorial de quadrinhos, que contava com outras quatro histórias.

O que fazer? Rafael Coutinho, autor de O beijo adolescente, marcou posição: decidiu angariar fundos por meio de um projeto de crowdfunding, sistema de financiamento coletivo que se tornou febre na internet. Usou um dos sites mais conhecidos do gênero, o Catarse, para o fim. Pediu R$ 32 mil para desenhar, publicar na internet e produzir – como fez com a primeira parte da história – mil cópias de um livro impresso com os quadrinhos.

Em dois meses, Rafa – como é conhecido pelos amigos – ultrapassou a projeção inicial e, com uma campanha de divulgação que mobilizou e extrapolou o universo de fãs do quadrinho nacional, arrecadou quase R$ 37 mil, doados por 383 apoiadores, que desembolsaram cifras diversas: de R$ 10 a R$ 2 mil.

Em geral, no crowdfunding é assim: quanto mais você doar, mais mimos vai ganhar. No caso de O beijo adolescente – segunda temporada, as recompensas vão desde o nome na página de agradecimentos até o direito de ter um personagem com os seus traços.

Abaixo, leia entrevista com Rafael Coutinho, uma troca de e-mails em que conversamos sobre a segunda temporada da sua história e também sobre crowdfunding – a ferramenta de viabilizar projetos que vem fazendo a cabeça de empreendedores e artistas pelo mundo; muitos deles, quadrinistas.  

Rafael Coutinho
Além de quadrinista, Rafael Coutinho é ilustrador e artista plástico. Em 2010 lançou, com o escritor Daniel Galera, a celebrada história em quadrinhos ‘Cachalote’. (foto: divulgação/ Companhia das Letras)

sobreCultura: Você achava que conseguiria o financiamento?
Rafael Coutinho: Não!!! Não achava. Existe um saltode fé envolvido, você precisa acreditar que vai acontecer. Mas no fundo sempreentro com um pé atrás, me preparando para o pior. Achei que tínhamos pedidodemais, que os pacotes estavam caros, fora da realidade dos fãs dequadrinhos. Mas repetíamos o mantra do “vai dar” aqui no estúdiotodos os dias, trabalhamos muito firme para rolar.

Por que o crowdfunding e não umaplataforma de lançamento mais convencional, como um portal feito o IG ou mesmo uma editora? Poderia demorar um pouco, mas em algummomento você provavelmente, nessa altura da carreira, conseguiria negociar a ideia de um modo confortável…
Engano seu, amigo. Não existe esseconforto no mercado editorial, nem para os grandes. Existem ralos paraonde escoam financiamentos para quadrinhos e, em algum momento, o autor precisaaceitar adaptar seu trabalho, direcioná-lo aos interesses dos patrocinadores e dos editais, sevoltar para adaptações literárias. 

Não me entenda mal, muita coisa boa é feitadessa forma. No caso do IG, o projeto com quadrinhos envolvia mais autores. O Beijo fez parte dessa apostade parceira com o portal. O IG bancou seismeses, mas não conseguiu patrocínio e o projeto foi abortado. 

Por isso o crowdfunding?
Fui atrás de todos os grandes portais, e o cenárioera desolador. Sempre gostei de fazer as coisas de forma independente, entãoresolvi arriscar. Como já tinha a plataforma da Narval, minha loja virtual, faziamais sentido criar o conteúdo para ela, uma vez que a edição impressa do Beijojá estava sendo vendida por lá. 

Nenhum projeto deve ficar parado por falta de dinheiro hoje em dia. É preciso abrir novas portas, há muitas saídas para tentar

Sou parte de um movimento maior que ganhaforça no Brasil, um movimento de criação independente, em parceria direta com os leitores.Somos dessa época, precisamos provar que é possível – já foi provado, naverdade. 

Acredito na parceria com editoras e grupos financeiros maiores, masentendi que não posso depender disso. Quero fazer as duas frentes, sempre. 

Nenhum projeto deve ficar parado por falta de dinheiro hoje em dia. É precisoabrir novas portas, há muitas saídas para tentar.

Certamente existem vantagens nessa faltade intermediação entre artista e público. Como você enxerga aprofissionalização da produção artística sem intermediários?Parece que há uma linha do tempo que pode ser traçada, uma história que começa nos blogues edeságua agora no crowdfunding
Sim, você tem toda razão. Tem gentemuito mais entendida do que eu nesse meio, gente que diz que os blogues vãomorrer, que o Facebook e as fanpages ganham cada vez mais força como novos formatosde portfólio on-line. A mala direta quase acabou, ninguém tem mais paciência paraficar recebendo mala direta por e-mail. As pessoas vão direto no que querem ver, baixar,ouvir e ler.

Vivemos o período dos nichos de mercado, com 100 amigosvirtuais você pode mover montanhas. Não há mais necessidade de mandar rodar 5 mil cópias e lidar com o estoque. Você pode imprimir por demanda,saber exatamente quantas pessoas querem o quê. 

O crowdfunding, as festas dearrecadação, as ações de flashmob, a nova moeda do like e do pageview em contraponto com o consumo material… Tudo isso já nos émuito íntimo. E sim, há um amadurecimento do meio, uma profissionalização. É preciso muita transparência e proximidadeentre consumidor e produtor para as coisas acontecerem. Acredito muito nisso, emfazer direitinho, apresentar bem a ideia.

Beijo adolescente
Peça de divulgação da segunda temporada de ‘O beijo adolescente’.

O livro será feito de forma tão artesanal e familiar quanto o primeiro ou, com o dinheiro arrecadado, você trabalhará numa escala mais industrial?
A granacontempla tudo, todos os gastos para que eu possa criar, desenhar, imprimir edistribuir, além de fazer os produtos que cada um ganhou ao contribuir noCatarse. E continua sendo tudo bem artesanal, o que é um prazer. Mas tenho já há um tempo uma equipe que me ajuda em tudo, além de uma teia maior, de prestadores de serviços que sempre ajudam a baixar o preço do material final a amigos que auxiliam na divulgação. Sem essa teia não tem jogo.

Você acompanha o crescimento, tanto aqui quanto no exterior, dos projetos de crowdfunding? Como você avalia esse momento?
Emancipação, cara. É um momento paraentrar para a história, para encher a boca quando falarmos sobre ele. Realmente não achoque seja passageiro, porque tem suas raízes na vendinha do seu Manoel, noBrasil colonial. Gente que se juntava para construir casa comunitária. Há pessoas que contribuíram no projeto que não vejo há mais de 20 anos e entraram emcontato via Facebook, Twitter, e-mail de conhecido… 

Não podemos dizer que acabou o intermediário, porque ainda somos intermediados pelo Zuckerberg

O meninoque tem seu fanzine na escola pode fazer um crowdfunding no encontro de Natal da família, ou na sua sala de aula. Tudo isso pela internet. Os sistemas de compra são muitosimples, é fácil administrar. É preciso ter apenas o mínimo de disciplina e organização, alémda papelada correta. Vamos ver outras plataformas e redes sociaisaparecerem num futuro próximo. Corro o risco de soar Nostradamus aqui. Mas éo caminho. 

Não podemos dizer que acabou o intermediário, porque ainda somosintermediados pelo Zuckerberg [criador do Facebook], mas já é um grande avanço para quem contava com revistas distribuídas em banca.

Há quem fale da dificuldade dos escritores para oferecer os ‘brindes’ que o crowdfunding exige. Essas pessoas afirmam que não haveria muito o que oferecer além do agradecimento ou, no máximo, do envio da obra com antecedência. No caso do quadrinista, ainda existe a possibilidade gráfica de presentear com um desenho exclusivo, um cartaz, outras obras… Você vê muita diferença entre o crowdfunding para quadrinhos e para livrosconvencionais?
O que existe é o interesse de fazeressas coisas ou não. Autores de livro não querem brincar com o mercado, queremser autores e ter seus livros respeitados e vendidos por outros que não eles.Quadrinistas também querem isso, e ambos precisam descer do confortável espaçode autores no qual sentaram comodamente durante séculos. É muito difícil seexpor ao que o mundo tem a dizer sobre o que você faz e mais difícil ainda ser o responsável por vender o que você faz.

Marketing é um palavrão que causa terror em rodas de artistas pelo mundo. Sei disso porque tenho muitas ressalvas quando preciso colocar minha cara num vídeo edizer que tenho algo para vender: um produto, uma ideia.

Significa que estou mevendendo, e parte da integridade da minha obra parece se desmanchar quando façoisso. Muita coisa chata acontece quando você se expõe assim, e-mailsmal-educados, gente que fica irritada porque você não comentou sobre o site dela quando ela contribuiu para o projeto, gente maluca que quer atenção, gentemaldosa que quer verificar a autenticidade do seu trabalho.

Não sou o cara quevai panfletar a autoexposição aos quatro ventos, mas, hoje em dia, existem formas bemcontroladas de fazer isso sem ter que se expor tanto assim. E nofundo disso tudo existe uma parte chata de encarar sua própria fragilidadeenquanto artista, assumir que você precisa da ajuda e do olhar do outro, seuleitor, ou por vezes do dinheiro dele. Não é um assunto fácil de resumir, nãovivemos num momento bom da história domundo para assumir fragilidades e dependência. Arrotamos autoconfiança eindependência, é complicado pedir ajuda, conclamar uma ação conjunta. Tem queter coragem e vontade, não acho que seja para todo artista. 

Mas se você querfazer um crowdfunding, seja o mais ‘consumível’, honesto e claro possível. Aspessoas querem consumir seu produto e participar de sua campanha, então sejacriativo. É duro trabalhar dois anos em um livro e ter que achar presença deespírito para ouvir conselhos de um publicitário ou marqueteiro, mas é umconhecimento passível de ser apreendido e muito eficaz. Não é ‘do mal’ se nãofor usado para o mal, demorei para entender isso.

Em que medida o ‘brinde’ – a recompensa – no crowdfunding realmente faz a diferença?
Faz TODA a diferença. Define quantocada um vai ganhar, e transporta seu projeto do título de ‘doação’ para ‘compra’. Gostei muito disso no Catarse, dessa diferença. Nãoestou pedindo dinheiro, estou vendendo produtos relacionados ao meu livro. Oque acho ótimo.

Parece haver uma contradição no processo de financiamento coletivo: quanto mais conhecido o artista é, quanto mais fãs tem, mais facilmente, em princípio, o projeto dá certo. Essa contradiçãonão combina muito com a ideia de financiar projetos independentes, que sugerempor trás artistas menos conhecidos…
Concordo, mas não acho contraditório,acho até bem literal e direto. Embora pareça, financiar projetos coletivamente não é uma causa, e sim um sistema. Acho também que o pequeno se beneficia proporcionalmente, uma vez que seu pequeno público financiará seu pequenoprojeto. São meninos que conseguem bancar suas revistas com a turma da sala,músicos que conseguem levantar, com uma festa, dinheiro para produzir um número reduzido de CDs que vão atingir seu pequeno séquito de fãs. É uma plataforma para pequenos e grandes, todos testando seus conteúdos das mais variadasformas.

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Clique para ampliar e ler passagem da primeira temporada de ‘O beijo adolescente’. Na história, jovens têm cor; adultos, não. (foto: divulgação)

Escrever para adolescente sem serinfantil é difícil ou até mais fácil? 
É uma delícia. Não é difícil porque nãoescrevo direcionando meu trabalho para crianças ou para adolescentes. Escrevo para mim, como se conversassecom uma parte que ficou na adolescência. Mas no fim escrevo para adultos. Acho que todo adulto gosta deler um monte de histórias: dramas, comédias, romances, histórias violentas,leves, históricas, documentais. Isso tudo pode ser adulto ou infantil,dependendo de como se lê. Acho o Beijo bem adulto.

A história, no fim da primeira parte, játinha uma continuação definida na sua cabeça ou você a criou mais tarde?
Tenho mais ou menos na cabeça as quatro partes que mepropus a fazer. Mas confesso que não sei se acaba aí. Alimento secretamenteo desejo de fazer para o resto da vida, mas um passo de cada vez. Quero deixar ahistória dizer também, não faz sentido colocar um ponto final ainda. O que achoimportante é que cada parte fique minimamente fechada, para dar a sensação deconclusão e de continuação ao mesmo tempo.

Você tinha um plano B para o projeto irpara frente caso não conseguisse financiamento ou a ideia iria para a gaveta?Estava pronto para uma possível rejeição?
Me preparei como quem se prepara para uma possível catástrofe. Como gosto de fazer cinco coisas ao mesmo tempo, as outrasquatro continuariam independentemente do resultado. É como funciono desde quandocomecei a me profissionalizar. Nunca foi um objetivo comercial e financeiro em si. Simplesmente quero fazer mais as coisas de que sou capaz. Mas sempre dá,é incrível o que você consegue fazer com oito horas de trabalho se você se disciplinar. Se não desse certo, acho que faria assim mesmo etentaria pré-venda pelo site da Narval, conversaria com os revendedores para tentar um sistema de compra antecipada, tentaria as editoras…

O ‘brinde’ para quem doasse R$ 5 mil ou mais era ser retratado na história. Você acha que, de algum modo, a liberdade do projetoartístico fica comprometida quando, em troca de financiamento, você inclui umpersonagem na obra?
Sim, foi uma questão, nunca gostei dessasaída. Me parecia tratar o projeto como um objeto comercial passível deloteamento, algo horrível. Chutei alto porque não queria que rolasse e, serolasse, seria porque realmente valeu a pena, daria ao projeto mais um mês de realização, ou mil exemplares a mais, ou simplesmente um belo adiantamento na captação. Ninguém chegou a dar esse valor. Mas depois percebi que estava elitizando uma parte muito íntima do quadrinho. Quem porventuracontribuísse seria premiado por ser rico e generoso. O garoto que juntou amesada e deu R$ 50 porque adora o Beijo e tem muita intimidade com a obra seria o principal prejudicado nessa história. 

Mesmo assim você levou para frente a ideia de desenhar o fã que contribuiu com a quantia mais alta, certo?
Não foi uma decisão muitoamadurecida. Muitas não foram. O crowdfunding é como um livro sendoescrito, uma hora você precisa parir e testar. Mas gosto muito de tudo queoferecemos ali, me sinto muito à vontade. Quando soube que um amigo tinha contribuído com R$ 2 mil – sei que não foi fácil para ele levantar essa quantia – fiquei tão emocionado que resolvi mudar a linha de premiação, só para fazer um carinho nele.Acabou que dei sorte e não tive que desenhar um cara qualquer, vou desenhar umgrande amigo e só ele saberá que está ali [o doador da quantia não teve a identidade revelada]. 

crowdfunding é como um livro sendo escrito, uma hora você precisa parir e testar

Reitero: essa premiação faz parte do jogo de seexpor e trazer as pessoas para perto do que você faz. Em outros trabalhos, nãotoparia. Em outros livros, outras pessoas entraram de formas diferentes, com fragmentos de ideias para caracterização de personagem, compondo umacena inspirada em um momento que vi ou vivi com elas.

O amigo desenhado é maisuma dessas expressões da presença do mundo e das pessoas nas coisas que faço, éuma decisão pessoal que precisa respeitar o momento de cada autor. Estou felizde desenhar meu amigo secreto. Não vai mudar o curso da história, será umcoadjuvante, mas para mim será um personagem muito importante, uma ponte com oreal.

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Os valores das doações no Catarse variaram de R$ 10 a R$ 2 mil, e não, como havia sido escrito, de R$ 2 mil a R$ 10 mil.

Além disso, o projeto arrecadou cerca de R$ 37 mil, e não, como havia sido escrito, mais de R$ 37 mil. (30/08/2012)