Cartas abertas

Muitos temas geram debate na redação da Ciência Hoje. Nesta semana, um assunto que mobilizou nosso interesse foi o texto do cineasta João Moreira Salles na Folha de S. Paulo de domingo passado (disponível aqui para assinantes do jornal ou da UOL e aqui em forma de PDF para o público em geral). 

Já houve inclusive respostas públicas a ele – uma delas, também publicada na Folha.

Pois bem, resolvemos abrir para os leitores a conversa que tivemos por e-maildurante o começo desta semana e, claro, disponibilizar a caixa decomentário para que todos participem conosco da reflexão.

O texto de João é uma crítica à hipervalorização das artes e humanidades em detrimento das ciências ‘duras’ e da engenharia no Brasil. Para o cineasta, enquanto os cientistas e engenheiros são pouco valorizados e admirados no país, há um glamour exacerbado da sociedade por quem é de humanas.

João usa como base de argumento uma palestra concedida em 1959 pelo físico e escritor inglês C.P. Snow, em que ele explicita a rachadura que passara a existir entre as ciências exatas e naturais e as humanidades.

O cineasta aponta alguns culpados pelo fenômeno, entre eles os próprios cientistas. Mas destaca com mais ênfase a responsabilidade maior dos profissionais de humanas. O jornalista, por exemplo, não daria espaço em seu periódico a um grande cientista. Ele continua:

“Sem desmerecer os excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, éimpossível negar que, para alguém sem grande talento ou dedicação, serásempre mais fácil ser medíocre num curso de humanas do que num deexatas”

É imprudente tomar uma decisão definitiva aos 18 anos de idade, mas é exatamente o que têm de fazer os alunos ao entrar na universidade – embora, como norma, eles não saibam para o que têm vocação. Uma vez escolhido o escaninho, somem as oportunidades de conhecer outras áreas e eventualmente migrar.

Se em algum momento a vocação se manifesta, em geral o aluno e sua família consideram que é tarde. Circunstâncias econômicas ou psicológicas – começar de novo exige determinação férrea – dificultam muito um ajuste de rota. (Sei bem como é, porque foi o meu caso.) É absolutamente certo que, neste momento, alguns milhares de jovens estão prestes a cometer o mesmo equívoco.

Muitos se revelarão apenas medianos ou preguiçosos, e é provável que a ciência não tenha como alcançá-los. Sem desmerecer os excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de humanas do que num de exatas.

Bom, abaixo, seguem as opiniões – diversas – de parte da nossa equipe.

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Thiago Camelo (Ciência Hoje On-line). 19h11, 7 de junho

Acho a fala do João muito retórica. As humanas ‘más’ e a ciência ‘boa’. Esse problema de falta de professor de exatas em escolas e em faculdade acontece há anos, e não é com um discurso depreciativo sobre arte que ele vai iluminar os cientistas (ou os governos).

A parte mais interessante do discurso é quando ele pede para levar um laboratório, em vez de tambores, para comunidades carentes. Também acho que usar a revista do Globo como parâmetro bem inadequado – e um fato que já aponta o lugar privilegiado de onde ele está olhando as coisas. E, estranho também, ele parece se colocar como o bastião desses ‘dois mundos possíveis’, numa falsa humildade desconcertante.

Uma curiosidade: entrevistei para cá uma moça que tem ideias bem legais de como incentivar as crianças a gostar de física.

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Alicia Ivanissevich (Ciência Hoje / RJ). 9h21, 8 de junho 

Não acho que o texto do JMS esteja criticando as ciências humanas. Na verdade, ele chama a atenção para a falta de interesse e investimento em áreas exatas e tecnológicas. Essas áreas têm menos glamour do que as artes, a moda e as humanidades, e é por isso que muitas vezes deixam de ser uma opção de carreira para nossos estudantes. Concordo com ele que seria necessário despertar o interesse pelas ciências duras (e não apenas por elas) desde cedo em todas as comunidades (ricas ou pobres). Essa forma de conhecimento precisa ser uma alternativa para a garotada e não apenas o futebol, o balé, a capoeira e o samba. Precisamos ampliar nossa cultura e não discriminá-la.

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Fred Furtado (Ciência Hoje / RJ). 13h06, 9 de junho.

Concordo com algumas coisas, discordo de outras. O ponto mais interessante para mim é a questão de iniciativas para despertar o interesse científico das crianças – todas elas, não apenas as de comunidades carentes, apesar de ser nesses locais que se concentram os programas das ONGs. Nada contra a tentativa de ampliar a cultura/raciocínio/pensamento crítico/criatividade das crianças por meio da arte ou dos esportes, mas é certo que um certo número de crianças não deve ter um desempenho excelente em ambas as áreas. Como disse o Kenneth Robinson em sua última palestra TED: ele e o Eric Clapton ganharam uma guitarra com a mesma idade, mas, no caso dele, a coisa não andou para frente. Por isso, acho que um estimulo maior a iniciativas como o Oguntec seriam muito bem-vindas.

Quanto a estarmos produzindo mais cineastas do que físicos, a primeira questão que me ocorre é: e dai?

Cineastas, dramaturgos, designers, profissionais da moda etc. não são cientistas humanos, para começo de conversa. O problema não é um desequilíbrio entre humanas e exatas/biológicas – e entre ciência e o resto. Os campos científicos em geral não são vistos como prioridade pelo governo, as profissões de pesquisador e cientista não são bem remuneradas, a atividade cientifica raramente dá oportunidades de se adquirir fama, a educação de base deixa a desejar e assim por diante. Dadas essas condições, não é surpreendente que muita gente prefira carreiras consideradas prioritárias, que paguem bem, tenham glamour ou cujo interesse tenha sido estimulado desde sua infância.

Finalmente, a PUC forma mais cineastas? Bom para eles. Ela pode até ter tido um departamento de física bom, mas agora não tem mais. Foi uma escolha da universidade, provavelmente motivada pela procura de cursos, já que é uma instituição paga. Quando as universidades públicas começarem a desmantelar seus departamentos de ciências exatas/biológicas, ai começo a me preocupar.

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Bernardo Esteves (Ciência Hoje On-line). 17h14, 9 de junho.

É saudável ver esse debate na capa do novo suplemento dominical da Folha, que nasceu com a missão de cobrir tanto ciência quanto cultura. Esperemos que o caderno consiga tratar os dois temas de forma integrada – a ciência como elemento integrante da cultura – e não só de forma paralela (algumas páginas sobre ciência em um caderno de cultura), como fazia o finado Mais! O tom e a temática dos artigos de capa do novo caderno dão sinal de que essa transformação pode estar a caminho.

No fundo, o que falta para superarmos as diferenças que opõem ciências naturais e humanidades é justamente promover a percepção de que ambas são componentes igualmente importantes da nossa bagagem cultural.

É verdade, por um lado, que a oposição que C.P. Snow fez entre ciências naturais e humanidades há meio século soa simplista e me incomodou quando li o seu ensaio, assim como me incomodou vê-la retomada sem maiores questionamentos por João Moreira Salles.

Mas é inegável que a fratura apontada nos dois textos existe. Um estudante da PUC que queira conquistar uma colega terá mais chance de impressioná-la se citar Joyce do que se fizer menção a Heisenberg. A ciência tende a ser percebida como algo menos sexy que a literatura, é um fato.

Mas como superar isso? Eis aí um grande problema. Estimular o interesse pelas ciências, como sugere Salles, pode ser um caminho interessante. O Ministério da Ciência e Tecnologia tem investido nisso nos últimos anos, com a criação de um departamento específico voltado para a popularização da ciência, responsável pela promoção de eventos como a Semana Nacional de C&T. Os próximos anos dirão se esse investimento terá algum efeito prático sobre a percepção pública da ciência.

Mas acredito também no poder das pequenas ações individuais para a mudança desse estado de espírito. Que tal, em vez de convidar sua namorada para um cinema no próximo fim de semana, levá-la a um museu de ciências? 

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Isabela Fraga (Ciência Hoje / RJ). 17h23, 9 de junho. 

Concordocom a ideia da Sheila de que o JMS faz seu discurso a partir domicrocosmo da Zona Sul carioca. Dá para falar até o contrário separtirmos de um outro universo tão restrito quanto esse.

Exemplo: quando prestei vestibular, a grande maioria da turma eracomposta de alunos futuros engenheiros. Poucas pessoas escolheram fazercursos que ‘não dão dinheiro’ como jornalismo, letras ou ciênciassociais. Daquele universo, eu poderia discordar veementemente do JMS eafirmar – com a mesma base que ele, quando se refere à PUC – que ashumanidades eram muito menos valorizadas que as ciências exatas.

Aí entra o ponto em que eu concordo com o Fred. O problema não é adesvalorização das ciências exatas e supervalorização das humanidades,mas a desvalorização da ciência, no sentido mais largo do termo, e semadjetivo. Assim como poucos jovens escolhem cursos como física e matemática pura e aplicada, apenas um ou dois corajosos ingressaram, àminha época, em ciências sociais ou filosofia.

Mas concordo com o JMS em relação à glamourização. Mesmo no campodo jornalismo, dizer que se trabalha com ciência não gera nem de longeo entusiasmo ou admiração do interlocutor do que falar que se trabalhanas área de cinema ou teatro. Não sei se isso é fator definitivo nahora de escolher uma carreira (imagino que não), mas é sem dúvidasintomático da desvalorização dessas outras áreas.

A despeito de pequenas discordâncias em relação à fala do João, oque ele defende é importante porque pouca gente fala de ciência fora domeio científico. É sempre bom chamar atenção para esse fato. E, comovocês já disseram, impossível não concordar que faltam iniciativasvoltadas para a ciência nas comunidades carentes. Mas é claro que a ‘culpa’ não é da dança, música ou pintura.

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Thiago Camelo
(Ciência Hoje On-line)