Cicatrizes da resistência: passado e presente

Abril foi um mês agitado – pelo menos para a memória daqueles que desafiaram o terrorismo de Estado que se instaurou no país com o golpe militar de 1964. O cinquentenário do tempestuoso episódio reaviva um passado sombrio de opressão. “Mas para nós, na verdade, a injustiça não é apenas passado; é ainda o presente”, diz à CH On-line a psicóloga da Universidade Federal Fluminense Cecília Coimbra, única fundadora ainda viva do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM).

No início do mês, o GTNM divulgou a relação dos homenageados com a Medalha Chico Mendes de Resistência. A láurea, em sua 26ª edição, reconhece os esforços de pessoas e instituições engajadas na defesa da liberdade e dos direitos humanos.

Foram 13 nomes agraciados. A lista inclui desde Julian Assange, manda-chuva do Wikileaks, até o morador de rua Rafael Braga, que, durante os protestos de junho do ano passado, no Rio de Janeiro (RJ), fora preso porque portava ‘material explosivo’. Era Pinho Sol. Braga está ainda detido – e quem recebeu a medalha em seu nome foi sua mãe.

Mãe do morador de rua Rafael Braga
Mãe do morador de rua Rafael Braga, durante a cerimônia de entrega da Medalha Chico Mendes de Resistência. (foto: ICH)

 

 

A cerimônia aconteceu na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A escolha do local foi simbólica. Pois no mesmo lugar, há 50 anos, estudantes que protestavam contra o regime militar recém-instaurado estavam encurralados pelas forças do Comando de Caça aos Comunistas – com direito a rajadas de metralhadora e bombas de gás lacrimogêneo.

Os acontecimentos daquele dia fatídico foram relembrados por Cecília Coimbra em um relato vivaz e detalhado.

Não são dos mais confortáveis os lembretes que a Medalha Chico Mendes de Resistência dá à sociedade. “Essa medalha mostra que os efeitos da ditadura ainda perduram”, explica Coimbra. “Na favela, a ditadura ainda não acabou”, disse a mãe de Rafael Braga durante a cerimônia de premiação.

Coimbra: “Desaparecimentos, extermínios, torturas; neste exato momento, provavelmente alguém está sendo torturado em alguma cidade de nosso país”

Apesar de polêmica, a afirmação tem sua razão de ser. Para Coimbra, a triste história do pedreiro Amarildo – desaparecido após sua prisão por policiais na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro (RJ), no ano passado – foi emblemática nesse sentido. Segundo reportagem da Carta Capital, o caso de Amarildo foi o único a ganhar visibilidade entre os 6.034 desaparecimentos contabilizados entre novembro de 2012 e outubro de 2013 pelo Instituto de Segurança Pública (ISP).

“É muito mais comum do que você pensa: uma pessoa é enquadrada pela polícia, torturada e executada; e, nos relatórios e investigações, policiais simplesmente declaram que a pessoa foi morta porque reagiu à voz de prisão”, acusa Coimbra.

“Desaparecimentos, extermínios, torturas; neste exato momento, provavelmente alguém está sendo torturado em alguma cidade de nosso país”, lamenta a psicóloga da UFF. “São os crimes da chamada democracia brasileira.”

Veja abaixo a lista dos homenageados em 2014 com a Medalha Chico Mendes de Resistência:
– Julian Assange (ativista e jornalista, fundador do Wikileaks)
– Amir Haddad (teatrólogo do grupo Tá na Rua)
– Ládio Veron (cacique da etnia Guarani-Kaiowá)
– Manoel Martins (advogado e ex-preso político)
– Rafael Braga (morador de rua condenado à prisão sob a acusação de portar material explosivo durante uma das manifestações de junho de 2013)
– Raquel Dodge e Sérgio Suiama (membros do Ministério Público Federal)
– Luiz Cláudio Cunha (jornalista e autor do livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios)

Homenagens póstumas:
– João Goulart (ex-presidente deposto pelo golpe de 1964)
– Amarildo Dias de Souza (pedreiro desaparecido desde julho do ano passado depois de detido por policiais militares que diziam pretender conduzi-lo à Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro)
– Luiz Maranhão (ex-deputado do Comitê Central do Partido Comunista, preso pelo regime militar em 1974 e depois desaparecido)
– Adriano Fonseca Filho (guerrilheiro do então clandestino Partido Comunista do Brasil desaparecido em 1973 no Araguaia)
– Marcos Antônio da Silva Lima (ex-marinheiro que aderiu à luta armada e foi morto por integrantes do Exército em 1970)

 

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line