Coincidências infelizes

Nos filmes de Hollywood, eles são terríveis criaturas sedentas de sangue humano. Na vida real, a fama não é muito diferente. Ataques de tubarão acontecem e o Brasil está entre os países com o maior número de casos anuais, a maioria deles ocorrida na orla de Recife, entre as praias de Boa Viagem e Paiva. O risco é real, mas as explicações populares para os ataques estão mais próximas da ficção.

Aqui, os animais não atacam porque têm fome, muito menos por gosto. Segundo o engenheiro de pesca da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Fabio Hazin, que apresentou palestra sobre o tema na 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada na semana passada em Recife, os ataques na cidade ocorrem devido a uma grande confluência de fatores naturais e provocados pela ação do homem.

Desde 1992, quando se iniciou a contagem oficial, Recife teve 59 ataques de tubarão notificados, 24 deles fatais – incluído nessa conta o caso mais recente, ocorrido na semana passada na praia de Boa Viagem. Há registros históricos de ataques que remontam aos anos 1940, mas, segundo Hazin, foi justamente a partir década de 1990 que os casos se tornaram mais frequentes. Para o pesquisador, uma das explicações para isso é a construção de um dos maiores portos do país, o de Suape, em 1984.

Hazin:“A principal causa dos ataques é a aproximação dos animais da praia, basta ter humanos perto de tubarões para que eles ocorram”

O porto foi implantado em área aterrada que bloqueou a foz do rio Ipojuca. Na época, para garantir o escoamento do rio para o mar, arrecifes da região foram destruídos. Pesquisas comparativas feitas na UFPE mostram que, depois dessas alterações no litoral, a população de algumas espécies de animais marinhos foi reduzida em até 80%, desequilibrando o ecossistema local.

Com isso, alguns animais que se alimentavam e reproduziam na região, como o tubarão cabeça-chata, foram obrigados a procurar o estuário mais próximo, justamente na região da praia de Boa Viagem, que atrai milhares de banhistas todos os anos.

“A principal causa dos ataques é a aproximação dos animais da praia, basta ter humanos perto de tubarões para que eles ocorram”, afirma Hazin, que estuda o comportamento dos tubarões em Recife desde 1994 e coordena o projeto Protuba, que monitora esses animais. “Mas não podemos deixar de dizer que essa aproximação foi intensificada por várias circunstâncias.”

Tubarão-tigre
O tubarão-tigre (na foto) e o cabeça-chata são as espécies responsáveis pelos ataques a humanos em Recife. (foto: Albert Kok/ Wikimedia Commons)

Junto com o cabeça-chata, outra espécie agressiva, o tubarão-tigre, é responsável pelos ataques no Nordeste. A costa brasileira faz parte da rota migratória desses animais. Hazin explica que eles vêm parar na orla atraídos por navios que chegam ao porto. Lá, encontram uma corrente marinha que segue para a praia de Boa Viagem e acabam desembocando nessa parte do litoral. “O nosso maior problema são os tubarões-tigre, pois aqui é passagem deles durante todo o ano”, diz Hazin.

Ao chegarem à praia, tanto o tubarão-tigre quanto o cabeça-chata encontram um canal natural, próximo à costa, que acompanha o litoral de Recife. O canal é uma espécie de vala submarina, mais profunda que o nível do solo da praia, posicionada atrás dos arrecifes. Os tubarões que entram nesse caminho tendem a segui-lo em vez de nadar em mar aberto. É como se ficassem encurralados. Mas, quando a maré está alta e cobre os arrecifes, os animais conseguem passar pela barreira natural e chegar à praia.

Além desses fatores, existe ainda a alta quantidade de matéria orgânica despejada nas águas dos rios ,e por consequência, no mar. Grande parte de Recife e das cidades vizinhas não tem saneamento básico. O esgoto produzido pela população é despejado diretamente nos rios, o que também atrai os tubarões em busca de comida e desequilibra o ecossistema local.

Chegada dos tubarões
Os tubarões são atraídos por navios que entram no porto de Suape. Uma corrente marítima em direção ao norte os leva a um canal submarino próximo à praia e aumenta o risco de aproximação com humanos. O barco Sinuelo, da UFPE, captura tubarões próximos ao canal e os liberta em alto-mar. (imagem: Sofia Moutinho)

“Hoje o rio Jaboatão, um dos principais de Pernambuco, é praticamente um rio morto”, diz Hazin. “Se compararmos o rio de 10 anos atrás com o de hoje, encontramos uma redução de biomassa e biodiversidade de 10%. O esgoto nas águas é um dos fatores associados aos ataques de tubarão mais difíceis de resolver, porque, infelizmente, o saneamento básico não é uma prioridade política.”

O pesquisador aponta ainda um fator pouco citado que pode piorar a situação dos ataques: os sedimentos nas águas dos rios. Quanto mais sedimentos caem nas águas, mas turvas elas ficam. Desse modo, mais difícil é para os humanos enxergar o tubarão na água e mais fácil é para o animal confundir um banhista com sua presa. Ademais, a turbidez da água atrapalha o desenvolvimento de corais, o que gera mais impactos no ecossistema.

“As pessoas pensam que eu estou maluco quando falo que o Código Florestal tem ligação com os tubarões, mas ele afeta diretamente”, comenta. “Sem a proteção das matas ciliares, a quantidade de materiais em suspensão vai aumentar.”

Monitoramento constante

Hazin afirma que os ataques de tubarão em Recife não têm solução definitiva, mas o risco pode ser reduzido com ações de monitoramento, prevenção e educação ambiental que já vêm sendo desenvolvidas.

Desde 2004, Hazin e uma equipe de pesquisadores e técnicos da UFPE e da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) mantêm um projeto que usa a pesca de tubarões como proteção. A princípio, a ideia pode parecer contraditória, mas reduziu o número de ataques em 90% desde que foi implantada.

Os ataques de tubarão em Recife não têm solução definitiva, mas o risco pode ser reduzido com ações de monitoramento

Por meio de um convênio com o governo do estado, o grupo mantém nas praias de Boa Viagem e Paiva uma corda de 18 km de extensão, chamada de espinhel, onde são pendurados anzóis com iscas específicas para tubarões. Essa corda fica a cerca de um quilômetro e meio da costa, entre o mar aberto e o canal natural formado no litoral, e serve para capturar os tubarões e impedi-los de chegar à praia.

Segundo Hazin, os anzóis causam impacto mínimo, de modo que a maioria dos animais capturados não morre. Um barco da universidade, o Sinuelo, faz o acompanhamento do espinhel, retira os tubarões e os libera em alto-mar. Mas não sem antes marcá-los com um transmissor que envia dados de localização do animal via satélite e outro que emite sinais acústicos detectados quando ele se aproxima da costa.

Marcações
Os tubarões capturados são marcados com transmissores acústicos e rastreadores via satélite. (foto: Fabio Hazin)

Mais de 300 tubarões, 80 deles de espécies agressivas, foram capturados e soltos em alto-mar desde o início do projeto. “Depois de liberados, todos os animais marcados seguiram seu caminho para o norte, nenhum deles retornou à praia”, diz Hazin, que salienta que, quando esse ataque recente ocorreu, seu projeto estava parado por falta de renovação do convênio, que se encerrou em dezembro de 2012 e só foi renovado dois dias após o ataque.

Reflexão futura

Hazin reforça que os tubarões não podem ser culpados pelos ataques e repudia propostas de matança dos animais como forma de controle. “Quando uma pessoa entra no mar, ela assume um risco de se afogar e de ser atacada”, diz. “Do mesmo modo que uma pessoa que vai fazer uma trilha na mata assume o risco de ser atacada por cobras, mas nem por isso pedimos que as cobras sejam todas mortas.”

O engenheiro também chama atenção para a importância de discutir e refletir sobre as próximas intervenções ambientais, como o alargamento das praias de Recife, que já foi iniciado. Cerca de 330 milhões de reais foram destinados ao projeto que vai retirar areia coletada do fundo do mar e recolocar na praia, diminuindo a distância que existe hoje entre o início da água e o canal submarino por onde passam os tubarões.

“Suape nos mostra que somos limitados na nossa capacidade de prever a resposta de um ecossistema marinho a uma intervenção humana; ninguém poderia prever o aumento do ataque de tubarões com a construção do porto”, pondera Hazin. “Mas não podemos esquecer que fomos nós que causamos esse problema. Temos que refletir sobre o nosso egoísmo e antropocentrismo e entender que não há nada que nos dê a prerrogativa de termos mais direitos que os demais seres vivos que habitam conosco esse planeta.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line

 

Veja a cobertura completa da 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e confira nossa galeria de fotos do evento.