Combinação explosiva

Terça, 20 de abril, véspera de feriado. Final da tarde. Meu programa de correio eletrônico indica nova mensagem, com arquivo PDF anexo. Leio o breve resumo. Percebo de saída ser coisa grande na área de física. Ligo imediatamente para a pessoa que me enviou a dica. Ele corrobora minha impressão inicial.

Sim, é importante. Sérá publicado na prestigiosa Physical Review Letters.

O estudo brasileiro é talvez um dos melhores resultados das últimas décadas na área de gravitação

São dois autores. Dois brasileiros: Daniel A. T. Vanzella e William C. C. Lima, ambos do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo. O artigo sai depois de amanhã

Vanzella e Lima perceberam as consequências (inusitadas) de se juntar a fraqueza da gravidade com a estranheza do vácuo. Na opinião de especialistas, é um dos melhores resultados dos últimos tempos na interface entre gravitação e física quântica.

As quatro forças da natureza

Há quatro forças na natureza: forte, que mantém o núcleo atômico coeso; fraca, envolvida em certos tipos de radioatividade; eletromagnética, responsável pelo atrito e por você, leitor, não atravessar o local em que está sentado ao ler este texto; e a gravidade, que nos mantém ‘colados’ à Terra ou faz os planetas girarem em torno do Sol, por exemplo.

Em nosso dia a dia, sentimos a eletromagnética e a gravidade. Esta tem papel fundamental nos fenômenos cosmológicos, na física do gigantesco, na física que envolve ou massas inimaginavelmente imensas e densas (estrelas de nêutrons, buracos negros, galáxias, aglomerados de galáxias etc.), ou velocidades próximas à da luz no vácuo (300 mil km/s). Nesse cardápio de fenômenos cósmicos e cosmológicos, a gravidade domina.

Mas no diminuto universo dos fragmentos de matéria, a gravidade tem outro papel.

A força forte e a fraca têm atuação restrita a distâncias da ordem de 10-15 m (0,000000000000001 m), ou seja, ao núcleo atômico. Nessas dimensões liliputianas, denominadas quânticas (daí, o nome física quântica), a gravidade é tida como insignificante. É 0,00000000000000000000000000000000000001 (10-38 vezes) mais fraca que a força forte. Ou seja, no domínio quântico, o da arena das entidades atômicas e subatômicas, a força gravitacional é para lá de desprezível.

Nos buracos negros, a gravidade reina absoluta. As massas desses populares objetos cósmicos são tão grandes que o puxão gravitacional que eles exercem em tudo o que está ao redor deles os transforma em sugadores insaciáveis de matéria e até mesmo de luz. Ao bancarem esses ralos cósmicos, ocorre um fenômeno em que a gravidade tem importância no mundo quântico: a criação de matéria e antimatéria nas ‘bordas’ do buraco negro, naquele limite que, se ultrapassado, leva a matéria a ser sugada, sem chance de voltar ao nosso mundo.

Será que o papel da gravidade em dimensões quânticas é mesmo desprezível?

Porém, mesmo esse fenômeno, resultante da interação da gravidade com o mundo quântico, tem consequências ‘pífias’: é impossível de ser observado em situações realísticas, dada a baixa taxa com que matéria e antimatéria são criadas. Ou seja, é ator coadjuvante.

Resumo: o papel da gravidade em dimensões quânticas é desprezível.

Será?

Dom Quixote e Sancho Pança

Agora, nossa história começa a ficar interessante. E o enredo segue mais ou menos o surrado dito ‘a união faz a força’. No caso, a insignificância da gravidade encontra um aliado igualmente sem papel quântico (observável) importante, o vácuo. É o conto dos anti-heróis, à la Dom Quixote e Sancho Pança. Separados, fracos; juntos, combinação explosiva, na definição do colega que me enviou a mensagem.

Advertência: sempre imaginamos que o vácuo é algo ‘vazio’. Bem, sinto informar que Aristóteles estava correto: a natureza abomina o vácuo. Este, no sentido clássico da palavra, não existe.

Experimento mental: saque toda a matéria de um recipiente. Mesmo assim, diz a física quântica, ficará lá um resto de energia, a chamada energia do vácuo. E, desse resíduo energético, pulularão, a todo instante, pares de matéria e antimatéria. O vácuo quântico é uma tormenta de criação e aniquilação. Está mais para fúria que para tranquilidade.

A dupla descobriu um efeito no qual um campo gravitacional bem comportado pode amplificar a energia do vácuo

Vanzella e Lima descobriram um efeito no qual um campo gravitacional bem comportado, como os inumeráveis que permeiam o cosmo, pode amplificar exponencialmente aquele ‘restinho’ de energia do vácuo. Amplificada, a energia do vácuo cria seu próprio campo gravitacional – lembre-se de que matéria e energia são equivalentes, como mostra a famosa equação E = mc2, de Einstein. Tudo se dá como se o vácuo estivesse devolvendo o favor àquele que o ajudou a se livrar de sua insignificância, a gravidade.

Como a massa de um bolo, a energia do vácuo cresce e passa a dominar a evolução do sistema em que ele está implicado. E aí, para usar linguagem do cotidiano, não tem pra ninguém!

A gravidade amplifica o vácuo, e a energia deste cria gravidade. Juntos, eles dominam, como os dois paladinos de Cervantes.

Vanzella e seu aluno de doutorado William Lima acreditam que esse novo fenômeno – que aqui ouso batizar efeito Vanzella-Lima – pode atuar em objetos cósmicos compactos, como estrelas de nêutrons, ou estruturas gigantescas, como aglomerados de galáxias.

Pausa.

Uma única pergunta

É feriado. E o bom jornalismo diz que eu deveria passar a mão no telefone e ligar para Vanzella. Mas imagino que ele deva estar exercendo o merecido sono dos justos…

“Alô, Vanzella, aqui é o Cássio, da Ciência Hoje…” (certo, parte do salário dos jornalistas é para incomodar gente nos feriados e depois das 22h em seus lares).

Digo que farei apenas uma pergunta: “Como um campo gravitacional bem comportado pode amplificar, de modo tão intenso, a energia do vácuo?”

Pergunta errada (para uma entrevista curta).

Vanzella me diz que a resposta vale um prêmio. E acrescenta que ele e Lima chegaram ao efeito depois de olhar os cálculos, analisar as equações.

Como o fenômeno ocorre ainda é um mistério

Portanto, como o fenômeno ocorre ainda é um mistério. Mas isso não significa que eles ainda não tenham uma hipótese para explicar a descoberta – leia mais sobre isso em breve neste blogue.

A conversa ganha corpo. Vanzella me diz que a energia do vácuo cresce tão rapidamente que, em questão de milissegundos, caso tomemos como exemplo uma estrela de nêutrons, ela já é maior que a do campo gravitacional (inicial) daquele objeto.

Por que milissegundos?

Essa escala de tempo tem a ver com o tempo que a luz levaria para atravessar o próprio sistema. Como uma estrela de nêutrons é muito compacta (tem diâmetro, se me lembro bem, na casa de poucos quilômetros), o tempo de travessia – e, consequentemente, de dominância do vácuo – é irrisório.

Minha curiosidade: “E depois de a energia do vácuo dominar o sistema, o que acontece com este último?”.

Vanzella diz que esse é o tópico do próximo artigo sobre as consequências do efeito Vanzella-Lima. O fato é que a energia do vácuo, em função do novo efeito, dobraria a cada 10-5 segundo em uma estrela de nêutrons. E não pararia de crescer.

Mas e o destino da estrela?

Vanzella arrisca dois cenários: i) o sistema explode e retoma a estabilidade (a energia do vácuo voltaria à sua insignificância); ii) a energia cresce, cresce, cresce… e a estrela se torna um buraco negro.

Em tempo

Vanzella já escreveu para a Ciência Hoje artigo em coautoria com George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista, sobre buracos negros. Quanto ao jovem Lima, começa a carreira emplacando um Physical Review Letters de peso. E, se a ousadia desta coluna vingar, dando nome a um novo efeito.

Estou curioso com os desdobramentos dessa história. Prometo segui-la.

Bom feriado a todos.

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ