Criação e recriação

As células-tronco são mais uma vez o tema do prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia. O inglês John Gurdon e o japonês Shinya Yamanaka dividirão este ano o prêmio de R$ 2,6 milhões por estudos que mostraram que células maduras e especializadas podem ser reprogramadas para dar origem a qualquer tipo de tecido, descoberta que promete mudar os rumos de tratamentos de diversas doenças.

Em 2007, o Nobel também foi para pesquisadores que estudaram as células-tronco. O inglês Martin J. Evans e os norte-americanos Mario R. Capecchi e Oliver Smithies ganharam o prêmio por experimentos com camundongos transgênicos que lhes permitiram descobrir como manipular geneticamente células-tronco embrionárias. 

Agora, o reconhecimento vai para Gurdon, que abriu caminho para os estudos sobre células-tronco em 1962, quando o termo ainda nem existia. Na época, ainda estudante de graduação em biologia da Universidade de Oxford, o cientista descobriu que a especialização das células é reversível. 

A pesquisa de Gurdon, além de ser um marco no estudo das células-tronco, possibilitou a clonagem de mamíferos

Todos nós já fomos um aglomerado de células-tronco que se diferenciaram em células com funções específicas, como as nervosas e musculares, e formaram nosso corpo. Até a descoberta de Gurdon, pensava-se que esse era um caminho de mão única, que as células desenvolvidas não poderiam retornar ao estágio imaturo em que são pluripotentes, ou seja, que têm amplas possibilidades de diferenciação.

O cientista mostrou que isso era possível em um experimento clássico em que substituiu o núcleo de um ovo de rã pelo núcleo de uma célula intestinal madura de outra rã. O ovo se desenvolveu normalmente e gerou um girino normal, clone do segundo sapo. Isso mostrou que o DNA de uma célula madura guarda a informação necessária para gerar todas as células de um organismo. A pesquisa, além de ser um marco no estudo das células-tronco, possibilitou, mais tarde, a clonagem de mamíferos. 

Experimento Gurdon
O esquema mostra o experimento de Gurdon, de 1962, que lhe rendeu o Nobel. (ilustração: Sofia Moutinho)

O avanço dos estudos com células-tronco não seguiu sem questionamentos éticos. A necessidade de usar embriões para obter células pluripotentes gerou discussões sobre se esse tipo de pesquisa, proibido em muitos países, deveria ser realizado. No Brasil, houve intenso debate sobre o tema. Em março de 2005, com a aprovação da Lei de Biossegurança, foram permitidos estudos com células-tronco de embriões humanos inviáveis e congelados por pelo menos três anos. 

No entanto, a decisão foi contestada judicialmente em maio do mesmo ano, criando uma batalha legal em torno da questão que só foi cessada em 2008, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu manter os termos da lei.

Yamanaka pôs fim a um impasse ético ao conseguir obter células-tronco diretamente de células adultas

Mais de 40 anos depois da descoberta de Gurdon, em 2006, o japonês Shinya Yamanaka pôs fim ao impasse ético ao conseguir obter células-tronco diretamente de células adultas, sem precisar usar embriões – as chamadas células-tronco de pluripotência induzida. 

Para isso, ele e colegas da Universidade de Quioto identificaram em células-tronco embrionárias quais eram os genes que as mantinham imaturas. Esses genes foram introduzidos, em diferentes combinações, em células do tecido conjuntivo, que preenche os espaços intracelulares do corpo. Depois de muitos testes, Yamanaka descobriu um arranjo que deu certo. 

Células-tronco pluripotentes
Células-tronco pluripotentes obtidas pela equipe de Yamanaka de células adultas do tecido conjuntivo de camundongos. (foto: Universidade de Quioto/ Centro de Pesquisa e Aplicação de iPS)

As descobertas de ambos os laureados abriram a possibilidade de reprogramar células humanas para estudar doenças e criar novas formas de diagnóstico e tratamento. “Suas descobertas impressionantes mudaram completamente nossa abordagem no desenvolvimento e especialização das células”, declarou o Comitê Nobel no anúncio do prêmio.
 

Futuro promissor

Hoje, diversos estudos usam, por exemplo, células da pele para criar óvulos, espermatozoides e até neurônios com a identidade genética do doador. Esse tipo de experimento é feito no Brasil pelo biólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista da CH On-line Stevens Rehen, responsável pelas primeiras linhagens de células-tronco pluripotentes induzidas no Brasil. O pesquisador recentemente usou a pele de pacientes com esquizofrenia para obter neurônios que podem dar pistas sobre a doença.

Para Rehen, a escolha da premiação veio em boa hora. “É sensacional o reconhecimento desse trabalho que começou com o Gurdon e foi ratificado tão recentemente com o Yamanaka”, diz . “A técnica do Yamanaka abre perspectivas de evolução terapêutica e medicinal que não se podiam imaginar antes. Ainda não existe tratamento de doenças usando célula-tronco pluripotentes, mas a gente sabe que em pouco tempo isso vai ser realidade.”

Rehen: “A técnica do Yamanaka abre perspectivas de evolução terapêutica e medicinal que não se podiam imaginar antes”

Esse é o desejo de Yamanaka: “Minha carreira começou na clínica, sou médico e minha meta de vida é trazer a tecnologia das células-tronco para as clínicas e pacientes e ajudar o máximo de pessoas possível”, disse em entrevista ao site do Nobel. 

Segundo Rehen, o maior empecilho para esse cenário se tornar realidade era o risco de formação de tumores durante a reprogramação celular por vírus. No método mais eficaz para transformar células adultas em células-tronco, usava-se vírus como cavalos de Troia para levar ao interior das células adultas os genes que a tornam pluripotentes. Mas o pesquisador avisa que já é possível gerar células-tronco de pluripotência induzida sem o uso de vírus e que estão previstos para os próximos anos pelo menos cinco novos testes clínicos com essas células. 

Em entrevista ao site do Nobel, Gurdon lembra, porém, que a ciência muitas vezes caminha a passos lentos e que ainda há muito para se estudar sobre as células-troco antes de aplicações terapêuticas. “Demorou quase dez anos para que meus resultados fossem aceitos. Hoje eu espero que, no final, nós realmente entendamos como as células-tronco funcionam.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Já é possível reprogramar células adultas para se tornarem pluripotentes sem o uso de vírus – a sua utilização nesse procedimento envolve riscos de desenvolvimento de tumores. Portanto, diferentemente do que escrevemos antes, este não é mais um empecilho para as pesquisas com células-tronco reprogramadas. (08/10/2012)