Crônica de uma obra ressurgida

Logo depois de sua morte, em 1968, o escritor Lúcio Cardoso passou quase três décadas praticamente ignorado. Rompeu esse limbo de esquecimento em 1998 quando suas obras começaram a ser republicadas e o cineasta Paulo Cesar Saraceni concluiu, com O viajante, a chamada Trilogia da Paixão, baseada em seus livros. Nada se compara, entretanto, à sua vigorosa ressurreição neste ano, quando se comemora o centenário de seu nascimento – ocorrido na cidade mineira de Curvelo em 14 de agosto de 1912.  

Têm vindo à tona vários outros aspectos da grandiosa e multifacetada produção de Lúcio Cardoso

Além dos romances – entre os quais a Crônica da casa assassinada, de 1959, é provavelmente o mais conhecido –, têm vindo à tona vários outros aspectos da grandiosa e multifacetada produção de Lúcio Cardoso, que incluía a poesia, a dramaturgia, o jornalismo e a pintura. 

Exemplos? Uma montagem teatral recente, dirigida por Gabriel Villela, de Crônica da casa assassinada; o documentário A mulher de longe, de Luiz Carlos Lacerda (Bigode) a partir de filme inacabado deixado pelo escritor; as quase 100 teses acadêmicas sobre sua literatura e arte. Além disso, mesas-redondas estão sendo promovidas sobre o autor, como a que está programada para o próximo dia 27 de agosto na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Poeta de peso

A publicação de um portentoso volume de 1.114 páginas com sua Poesia completa é um dos maiores destaques entre as comemorações. O feito cabe ao pesquisador Ésio Macedo Ribeiro, que preparou a edição crítica durante seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Além de incorporar os dois volumes de poesia publicados pelo autor nos anos 1940 e um outro, póstumo, de 1982, todos esgotados há tempos, Ribeiro mergulhou nos arquivos da Casa de Rui Barbosa, onde se encontra todo o acervo de Lúcio Cardoso (recortes de jornais e revistas, correspondência etc.), e em textos guardados por amigos para chegar ao livro publicado no final do ano passado pela Editora da USP.

capa, poesia completa 1“Lúcio nunca deixou de escrever poesia; o primeiro poema que ele publicou foi em 1934, mesma data de seu romance de estreia, Maleita”, conta Ribeiro, que pesquisa apaixonadamente a obra do autor há mais de 25 anos (sua tese de mestrado foi também sobre ele).

Com a maior parte de sua obra poética desconhecida até agora, Lúcio Cardoso poderia ingressar, assim, no panteão dos nossos grandes poetas?

Ribeiro responde que sua preocupaçao foi a de reunir toda a obra poética, e não a de emitir um juízo critico sobre ela. “É uma produção irregular, aliás como a de muitos outros grandes poetas. Lúcio tem poemas lindos. Ele trabalhava muito o ritmo, a sonoridade, e sofreu bastante influência de Fernando Pessoa e dos poetas franceses, como Baudelaire e Rimbaud.”

Depois de reunir a poesia completa, Ribeiro se dedicou aos diários deixados pelo artista, que escreveu compulsivamente durante toda sua vida até o momento em que sofreu um AVC, que lhe paralisou o lado direito, impedindo-o de escrever até a sua morte.

O Diário de Lúcio Cardoso, que sairá ainda neste ano pela editora Civilização Brasileira, traz, além dos dois volumes que já haviam sido publicados, um material que se encontrava inédito. 

“Descobri um diário anterior a esses dois, que chegava até 1942, quando ele tinha 30 anos; esse conjunto forma, para mim, os diários mais pungentes já escritos neste país, ele me fez rir e chorar muito”, diz Ribeiro.
 

Experiência-limite

Quando Lúcio Cardoso sofreu o derrame que paralisou seus movimentos, em 1962, ele, antes um pintor esporádico, fez da pintura sua principal forma de comunicação com o mundo. É sobre esse período a tese de doutorado de Beatriz dos Santos Damasceno, defendida em 2010 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e que sairá pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no próximo mês, Lúcio Cardoso – em corpo e escrita.

Nesses seis anos, entre 1962 e 1968, impossibilitado de escrever romances, ele começa a pintar. “Assustadoramente”, explica Damasceno.

O ‘novo ofício’, no entanto, não substituiu completamente o ‘oficial’. ”Pensavam que ele não tinha escrito nada no período, mas não foi bem assim”, diz a pesquisadora. “Encontrei no arquivo da Casa de Rui Barbosa mais de 400 folhas de blocos em que ele registrava as aflições e as alegrias do dia a dia. Chamei essas anotações com lacunas, falta de letras, de ‘escrita em detritos’, porque ela se dava à maneira própria do corpo.”

30 obras
Após derrame, Lúcio Cardoso mal conseguia escrever. Em seu diário, ele lamenta, com letra tremida, mas de modo claro e contundente, a limitação. (foto: Fundação Casa de Rui Barbosa)

Com a mesma voracidade que marca sua obra de romancista, Lúcio Cardoso se atirou à pintura e chegou, mesmo durante a doença que o deixou afásico, a fazer várias exposições. Sem poder mover a mão direita, passou a usar a esquerda. “Ele se lambuzava de pintura, o braço, o cabelo, parecia que pintava o corpo todo”, diz Damasceno, apoiada nos relatos de Maria Helena Cardoso, irmã do escritor, que registrou suas memórias no livro Vida-vida.

A relação entre a obra literária e a sensibilidade pictórica do escritor foi estudada também por Andrea Vilela, em sua tese de doutorado O traçado de uma vida, defendida em 2007 na Universidade Federal de Minas Gerais e que traz reproduções de vários quadros pintados por Lúcio Cardoso.

Ilha e continente

O levantamento bibliográfico de Lúcio Cardoso realizado por Mario Carelli, seu grande biógrafo e estudioso, no final da década de 1980, se feito hoje seria acrescido ainda de dois volumes. A pesquisadora literária e editora Valéria Lamego também conseguiu garimpar preciosidades na Casa de Rui Barbosa e em outros arquivos. Ela preparou duas seleções de contos do autor, que serão publicadas pela Civilização Brasileira.

A primeira a sair, ainda neste ano, tem título criado pelo próprio Lúcio Cardoso, que chegou a pensar na publicação que afinal não aconteceu – Contos da ilha e do continente. Segundo Lamego, esse livro reúne contos longos, inclusive uma novela, ‘Céu escuro’, enquanto o segundo é formado por contos curtos.

A gigantesca produção jornalística do autor devia-se, em parte, às dívidas contraídas em sua experiência com o cinema

“Chamo de longos e curtos, mas, na verdade, não se trata propriamente de tamanho; os contos da primeira seleção têm a estrutura clássica do conto, o ápice, por exemplo”, diz Lamego. “Alguns são fantásticos, com influência de Edgar Allan Poe, outros mais líricos; já o segundo volume é composto de crimes que Lúcio reescrevia e publicava diariamente no jornal A Noite”, completa.

Lamego observa que a gigantesca produção jornalística do autor devia-se, em parte, às dívidas contraídas em sua experiência com o cinema. “Os contos eram um meio de sobrevivência e também uma forma de testar algumas temáticas, um modo de concretizar a premência de criar histórias.”

Toda a movimentação gerada a partir dos festejos pelo centenário não faz jus apenas à obra caudalosa e ainda hoje impactante de Lúcio Cardoso, mas também retira da solidão o estudo pioneiro de Carelli, significativamente intitulado Corcel de fogo.

Assista a trechos do documentário
Lúcio Cardoso, de 1993


Sheila Kaplan
Ciência Hoje/ RJ