Das redes para as ruas

Poucos meses atrás, seria difícil imaginar que, em plena Copa das Confederações, evento teste para a Copa do Mundo de 2014, o Brasil que estaria chamando a atenção do mundo não seria nossa pátria de chuteiras, mas o palco de um movimento democrático com relevância política e social muito maior. Saídas da internet para as ruas, as manifestações colocam em cheque o discurso da mídia de massa, a representação partidária, a capacidade dos políticos de lidar com a veemência das demandas democráticas e a própria gestão dos espaços urbanos e da vida política do país. 

A Ciência Hoje On-line ouviu especialistas e selecionou alguns dos muitos textos publicados na internet para tentar formar um panorama da situação no país. Tarefa complicada, num momento em que a própria população parece indecisa sobre o que fazer com o poder que descobriu ter nas mãos e em que governantes e políticos em geral ainda parecem tentar anotar a placa do bonde da história que os atingiu.

Torcedores protestam durante partida entre Espanha e Taiti, no Maracanã: “O povo unido jamais será vencido”

A mobilização começou no ano passado, com manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus em Natal, no Rio Grande do Norte. Nos primeiros meses de 2013, novos protestos ocorreram pelo Brasil e, mesmo descentralizado, o movimento ganhou força, organizado pelas redes sociais. Em junho, tomou o país, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro, onde centenas de milhares foram às ruas nos dias 17 e20, e Brasília, onde manifestantes ocuparam no dia 17 o Congresso Nacional. No dia 21 de junho, a presidente Dilma Rousseff fez um aguardado pronunciamento e, no dia 24, se reuniu com prefeitos e governadores para buscar soluções para a crise

Mesmo com a capitulação de governadores e prefeitos, o movimento segue na rua, com uma pauta ampla e difusa de questões

Mesmo com a capitulação de governadores e prefeitos e a suspensão dos aumentos de tarifa, o movimento segue na rua, com uma pauta ampla e difusa de questões.  Entre elas, protestos contra o projeto de ‘cura gay’, contra o Projeto de Emenda Constitucional 37 – a PEC37, já derrubada ontem – e contra os enormes gastos com a Copa do Mundo. As manifestações provocaram desconforto na organização do torneio e o próprio secretário-geral da Fifa afirmou que prefere realizar o evento em países com menos democracia

Gigante adormecido

Apesar do bordão ‘Acorda Brasil’ ter se tornado popular nos protestos, para o cientista político Diogo Lyra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o episódio não reflete um despertar, mas um longo processo. “Os protestos não são fruto do acaso, mas da aprendizagem sobre o papel da sociedade civil num contexto democrático”, avalia. “Sua explosão se desenha há anos pelo acúmulo de conquistas e de insatisfações.”

Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, o sociólogo Luiz Werneck Viana, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), também defende que o movimento não é um raio “em dia de céu azul”. Em seu blogue, o cientista político Leonardo Sakamoto, da PUC de São Paulo, também lembra que diversos movimentos, como feministas, negros e homossexuais, nunca “dormiram” e há anos lutam por direitos. 

Manifestante com cartaz
O aumento de 20 centavos no transporte público serviu de estopim para as manifestações. Protestos, no entanto, apontam problemas que vão muito além da mobilidade urbana. (foto: Semilla Luz/ Flickr – CC BY 2.0)

Em artigo na próxima edição da revista Ciência Hoje, o cientista político Renato Lessa, da Universidade Federal Fluminense, destaca a representatividade da questão do transporte, fundamental para a qualidade de vida. 

Carvalho: “Temos milhões de novos jovens nas universidades e isso é uma revolução; eles incorporaram uma perspectiva crítica e almejam mais reconhecimento e participação na política”

“A demanda das ruas é tanto pela extensão da democracia quanto pela fixação de um limite ao privatismo predatório na provisão de direitos públicos e sociais”, avalia. No jornal Folha de São Paulo, o filósofo Vladimir Safatle, da Universidade de São Paulo (USP), também fala da “catástrofe urbana” moldada pela especulação imobiliária e pelas máfias de transportes.

Sobre as origens do movimento, a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, da PUC-RJ, destaca o surgimento de uma nova classe média, fruto das mudanças sociais promovidas pelas políticas de redistribuição de renda na última década. “Temos milhões de novos jovens nas universidades e isso é uma revolução; eles incorporaram uma perspectiva crítica e almejam mais reconhecimento e participação na política”, avalia. “Há, no entanto, um ponto que falta para a sociedade como um todo: um projeto de futuro que aborde questões centrais como ciência, tecnologia, educação e energia.”

 

Partidos e modelos

O apartidarismo do movimento, que gerou confusão quando manifestantes tentaram levantar bandeiras de partidos, parece simbolizar o distanciamento entre a população e seus representantes. “O preocupante é associar isso à alienação, à falta de ‘política’; o agir político não está reduzido a partidos”, afirma Lyra.

Apesar da filiação ‘de esquerda’ do Movimento Passe Livre, um dos organizadores dos protestos, Carvalho acha difícil definir a orientação política da mobilização. “Muitas tendências cruzadas foram para a rua. Mais do que direita ou esquerda, eles são contra um sistema político voltado apenas para o jogo do poder.” Em seu blogue, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Universidade Estadual Paulista, defende que é natural, num movimento multicêntrico e horizontal, que pautas menos democráticas “entrem no caldo”. Mas, segundo ele, pensar que as manifestações poderiam servir para um golpe conservador da mídia e ‘da direita’ é desastroso, por dicotomizar uma discussão com potencial para promover a renovação.

Manifestantes no Congresso
No dia 17 de junho, manifestantes chegaram a ocupar a laje do Congresso Nacional. O distanciamento entre a classe política e a população é um dos fatores que ajudam a explicar os protestos. (foto: Semilla Luz/ Flickr – CC BY 2.0)

Para Lyra, o distanciamento da classe política fica evidente na arrogante reação de governadores e prefeitos. “Muitos são desacostumados ao processo democrático, como mostra o recuo das prefeituras de São Paulo e Rio de Janeiro, marcado por ameaças”, diz. “Em nenhum momento foi cogitado diminuir o lucro das empresas, que prestam um péssimo serviço.” Maria Alice de Carvalho avalia que essas “declarações infelizes” demonstram surpresa com a comoção popular e destaca o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff. “Ela falou com precisão sobre a necessidade de ouvir as ruas e de ampliar o foco da democracia brasileira.” 

Violência gera violência

Os episódios violentos das últimas semanas também foram muito discutidos pela imprensa e nas redes sociais. “Com milhões nas ruas, alguma violência seria esperada; as ações mais agudas são obra de grupos que já têm participação raivosa na sociedade, agredindo homossexuais e destruindo patrimônio público”, avalia Carvalho. “Já a polícia mostrou falta de preparo para a situação. Deveria conter excessos e proteger os manifestantes, mas vimos omissão e desrespeito aos cidadãos.”

Vandalismo
A violência de pequenos grupos envolvidos nas manifestações e a dura repressão policial refletem as relações violentas que marcam o cotidiano das grandes metrópoles brasileiras. (foto: Semilla Luz/ Flickr – CC BY 2.0)

Lyra afirma que os episódios devem ser avaliados sob a ótica da violenta relação do poder público com a cidade – como as recentes remoções no Rio de Janeiro. A cientista política Sônia Maria Fleury Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas, destaca a violência cotidiana. “Há muita atenção para a violência espetacularizada que a mídia vende, mas há formas piores de violência – étnica, institucional e de classe”, avalia. “Violência é a pessoa rodar de hospital em hospital em busca de atendimento, é ser espremida em transportes públicos como lata de sardinha. Essa violência cotidiana está na origem dos episódios, diminui a confiança nas instituições.” 

Teixeira: “Violência é a pessoa rodar de hospital em hospital em busca de atendimento, é ser espremida em transportes públicos como lata de sardinha”

A representação contrastante da violência nas redes sociais e na imprensa mostra uma luta que vai muito além de cartazes e gás lacrimogêneo – em seus perfis pessoais e nas redes de comunicação independentes, como a N.I.N.J.A. (que cobriu as passeatas pela internet), os manifestantes contestaram o discurso oficial. “A mídia sai enfraquecida, perdeu-se o monopólio da informação; cada declaração foi desmentida nas redes sociais”, diz Lyra. “Isso obrigou a mídia a mudar de enfoque – de vândalos a libertários – e mostrou o distanciamento entre o que ela veicula e o que acontece na vida real.” 

Apesar de notar que, após uma primeira reação infeliz, a mídia procurou entender o processo em andamento e saudou a nova face dos jovens, Carvalho destaca que a postura parcial dos meios de comunicação têm papel relevante na insatisfação que originou os protestos. “Existe uma revolta contra uma mídia que não noticia, que não reflete, e isso tem relação com a oxigenação da democracia”, afirma. “Ao mesmo tempo, temos a internet e suas formas nanicas de comunicação, mas é bom lembrar que nem todo blogue ou página é um espaço autônomo e independente.” 

Resposta nas urnas

Conquistada a redução de tarifas, já se discute a necessidade de mobilizações mais permanentes. “O movimento pode se organizar em torno das demandas apresentadas, como a mobilidade, para buscar uma institucionalização duradoura”, pondera Teixeira. “Em cidades como o Rio de Janeiro, tentativas anteriores de organizar iniciativas em torno do tema foram abafadas pelos governantes. As manifestações também são fruto dessa ausência de diálogo e acredito que agora eles estarão mais dispostos a dialogar.”  

Ônibus com cartazes
Os rumos das manifestações ainda não são claros, mas especialistas acreditam que elas provocarão mudanças no debate político na próxima campanha eleitoral, que deve prestar mais atenção às reivindicações da sociedade. (foto: Semilla Luz/ Flickr – CC BY 2.0)

Para Lyra, o movimento pode ter um claro impacto nas urnas no próximo ano, em especial em nível local. “Uma mudança na disputa eleitoral parece clara: o nível medieval dos ‘debates’ não será mais aceito”, acredita. Para Teixeira, o cenário político já foi modificado pelas manifestações. “O pronunciamento da presidente mostra isso“, diz. E completa: “Espero que os políticos se mostrem mais atentos às demandas da população e acredito que o debate eleitoral será diferente, abordará temas com mais profundidade e algumas propostas de solução podem surgir até lá.”

Outros textos e contextos  
Confira outros dos muitos textos espalhados pela rede que ajudam a entender e a pensar sobre as manifestações. Se quiser, sugira outras leituras nos comentários do post!

Sem partido
Vladimir Safatle – Folha de São Paulo, 25 de junho de 2013

E as empresas de ônibus?
Gilberto Scofield Jr –  O Globo, 22 de junho de 2013

Representações
Hermano Vianna – O Globo, 21 de junho de 2013

A massa contra os partidos? 
Marco Nogueira – Blogue Possibilidades da política, 21 de junho de 2013

Brazil’s vinegar uprising
Vanessa Barbara – The New York Times, 21 de junho de 2013

E, em São Paulo, o Facebook e o Twitter foram às ruas. Literalmente. 
Leonardo Sakamoto – Blogue no portal UOL, 21 de junho de 2013

O futuro incerto das manifestações
Entrevista com o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL – Valor Econômico, 20 de junho de 2013

A visita inesperada
Paulo Gajanigo – Revista Pittacos, 19 de junho de 2013

Os protestos e o fim da administração das coisas? 
Fernando Filgueiras – Revista Pittacos, 18 de junho de 2013

O que eu sei e o que não sei sobre as manifestações pelo passe livre
Luiz Eduardo Soares – Revista Pittacos, 17 de junho de 2013

Como as empresas de ônibus maquiam custos
Fernando Souto – Blogue do Nassif, 17 de junho 

Vandalismo de Estado
Compilação de registros de manifestantes sobre ação da polícia em diversas capitais

 

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line