De olho vendado

A construção do maior telescópio do mundo, o Extremely Large Telescope (ELT), planejado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO) e previsto para entrar em operação em 2020, está, pelo menos em parte, nas mãos do Brasil. O país ainda não ratificou um acordo firmado em 2010, pelo qual se tornaria o primeiro membro não europeu da instituição, garantindo as condições financeiras para concretizar o projeto.

O acordo de intenção entre o Brasil e os 14 países membros do ESO foi firmado em 2010 pelo então ministro da Ciência e Tecnologia Sergio Rezende. O documento, que ainda precisa ser ratificado pelo Congresso para entrar em vigor, previa a incorporação formal do país ao ESO em 2011.

Como país membro, o Brasil passaria a desfrutar de todos os benefícios que os integrantes da instituição têm

Como país membro, o Brasil passaria a desfrutar de todos os benefícios que os integrantes da instituição têm, como acesso livre à infraestrutura do complexo de observatórios no Chile, poder de decisão sobre investimentos tecnológicos e oportunidade de pedido de tempo de uso dos equipamentos já existentes e futuros, como o ALMA, em construção, e o ELT.

Se construído, o ELT, já conhecido como o “maior olho do mundo no céu”, será o telescópio ótico mais potente do planeta, com um espelho de 40 metros de diâmetro que possibilitará coletar 15 vezes mais luz que qualquer telescópio em atividade atualmente, o que significa uma imagem mais nítida das zonas mais distantes do universo.

Para ter acesso ao supertelescópio e às benesses de um país membro, o Brasil se comprometeu a pagar uma taxa de adesão de 115 milhões de euros em parcelas progressivas ao longo de dez anos, além de uma contribuição anual para cobrir custos operacionais e novos investimentos, que deve somar 126 milhões de euros até 2020 – prazo previsto para o fim da construção do ELT.

Vista panorâmica do deserto de Atacama
Vista panorâmica do deserto de Atacama, no norte do Chile, com os telescópios e equipamentos do ESO. Para desfrutar de todas as vantagens de um país membro, o Brasil precisa ratificar acordo firmado em 2010 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. (foto: G.Hüdepohl/ ESO)

Desde a assinatura do acordo, o ESO vem tratando o Brasil como se já fosse um país membro. A nossa bandeira fulgura entre as dos outros integrantes da organização e pesquisadores brasileiros já tiveram projetos submetidos e aprovados. Cerca de 30% do tempo de observação pedido foi concedido, uma média compatível com a dos demais países participantes do consórcio.

No entanto, passado um ano da data prevista para a ratificação, o acordo ainda não foi enviado para votação no Congresso. O encaminhamento, que deve ser feito pelo Ministério das Relações Exteriores, depende apenas do endosso do atual ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante.

Mas, segundo o diretor do ESO, Tim Zeeuw, o ministro tem ignorado todas as tentativas de contato para discutir o acordo feitas até agora. Até a nomeação de conselheiros brasileiros para representar o Brasil na organização, que deveria ter sido feita pelo ministério, passou em branco e o ESO teve que convidar pesquisadores por conta própria. Estes, por não serem representantes oficiais, não têm poder de voto nas reuniões da organização.

A demora do Brasil e a falta de respostas do ministério têm tirado o sono dos países membros da organização e pode comprometer a construção do ELT

A demora do Brasil e a falta de respostas do ministério têm tirado o sono dos países membros da organização e pode comprometer a construção do ELT, orçado em um bilhão de dólares. “No momento a entrada do Brasil é necessária para a viabilização do ELT”, afirmou Zeeuw em encontro com jornalistas brasileiros no Chile.

“Quero acreditar que o governo brasileiro vai cumprir com o prometido, mas alguns países membros do ESO estão preocupados, pois vivemos um momento de crise financeira mundial em que é arriscado reservar o dinheiro destinado para o ELT por tanto tempo. Se a ratificação do Brasil não se der até o meio do ano pode comprometer o projeto e também a vaga do país no ESO.”

Zeeuw explicou que o comitê de países membros do ESO aprovou um orçamento de 10 milhões de euros para dar início ao desenvolvimento de peças mais complexas e urgentes do telescópio, mas contratos que envolvem empresas, como construtoras civis, não podem ser feitos até que o Brasil dê uma resposta.

“Não podemos fazer nenhum grande contrato porque não temos o dinheiro garantido”, explicou. “Assim que o Brasil se juntar ao ESO integralmente, como prometido, podemos iniciar esses contratos, que vão beneficiar também o Brasil, que tem grandes indústrias de construção civil, inclusive com presença no Chile.”

Futuro incerto

Procurado pela imprensa, o MCT&I divulgou que a adesão do Brasil ao ESO está sendo reavaliada devido aos cortes orçamentários sofridos no ano passado. A nota do ministério não diz quando o acordo será encaminhado para votação no Congresso nem se será cumprido, mas afirma que “empregará todos os esforços” para que o país ingresse no ESO, o que “exigirá um processo de negociação amplo a partir da ratificação do acordo”.

A nota também cita o alto custo da adesão, um dos principais argumentos de quem é contra o acordo, como o astrônomo João Steiner, da Universidade de São Paulo (USP). “A astronomia brasileira não tem esse dinheiro”, diz. “Se tivéssemos, deveríamos buscar investimentos mais estratégicos. Com esse acordo estamos subsidiando a ciência e tecnologia europeias, o que não tem cabimento.”

Steiner: “A astronomia brasileira não tem esse dinheiro. Se tivéssemos, deveríamos buscar investimentos mais estratégicos”

O astrônomo da USP Marcos Diaz, que atualmente representa o Brasil no Comitê Científico do ESO, rebate a crítica de Steiner. Segundo ele, nenhum outro observatório no mundo tem o custo benefício que o ESO oferece. “Temos parcerias com observatórios internacionais como o Gemini e o Soar, mas tanto os aparelhos disponíveis lá quanto os que temos no Brasil não chegam aos pés dos do ESO”, diz.

De acordo com Andreas Kaufer, diretor do principal observatório do ESO, o Paranal, no Atacama, o investimento feito pelos países membros que se unem ao ESO têm pelo menos 75% de retorno garantido por meio de licitações de empresas terceirizadas e do desenvolvimento de instrumentos extras de alta tecnologia para os telescópios.

“O dinheiro volta em forma de competição entre empresas dos países membros”, garante. “Não se recebe exatamente o que se investiu – às vezes o retorno é maior, às vezes menor –, mas a competição é sempre boa e a possibilidade de desenvolver novos equipamentos científicos beneficia a indústria e o conhecimento.”

Céu sobre o VLT, no ESO
O céu acima do atualmente maior telescópio do ESO, em Paranal, Chile. Esta longa exposição mostra as estrelas girando em torno dos polos sul (à esquerda) e norte (à direita) celestes, enquanto o equador celeste está no meio. (foto: Stéphane Guisard/ ESO)

Para o diretor do ESO, Tim Zeeuw, a não ratificação do acordo seria uma grande perda para a organização, para a ciência de modo geral e para o Brasil, cujas pesquisas em andamento no observatório seriam suspensas.

“O Brasil iria perder a oportunidade de acesso aos melhores telescópios do mundo e ao desenvolvimento cientifico e tecnológico, enquanto que o ESO teria o projeto do ELT comprometido”, disse. “Seria uma perda gigante para a ciência e prefiro pensar que isso não vai acontecer.”

A reposta do MCT&I é uma incógnita ainda maior em razão da saída do ministro Mercadante, que deve deixar a pasta na semana que vem para assumir o Ministério da Educação. Resta esperar pela nomeação do novo ministro e torcer para que uma decisão, seja ela qual for, venha a tempo.


Sofia Moutinho*
Ciência Hoje On-line

* A jornalista viajou ao Chile a convite do ESO.