Design filosófico

Design é, sem dúvida, um dos termos mais populares deste milênio. Tudo hoje em dia pode ser objeto de design: partes do corpo, comidas, cidades e modelos de negócios – além, é claro, de ambientes, roupas, marcas, sites, livros etc. A onipresença do termo suscita reações diversas, dentre as quais podemos destacar as que transitam entre dois polos: o funcionalista e o humanístico.

No primeiro polo estão aqueles que veem o design como alguma coisa acessória que é acrescentada a um núcleo previamente existente. Ou seja, ele é visto apenas como a cobertura de algo realmente importante: por exemplo, a aparência que cobre a estrutura mecânica do carro ou do computador que reveste o hardware.

Algumas pessoas consideram que certos objetos são formados quase exclusivamente de ‘cobertura’ e não se cansam de denegri-los e a seus produtores e divulgadores. Dizem: “os publicitários e os designers nos fazem comprar coisas de que não precisamos, atraindo-nos com superficialidades”. Ou: “Por que gastar o dobro em um celular só porque é bonito ou da marca X?”.

É provável que a maioria das pessoas com essa opinião não saiba que, há algumas décadas, a visão que dominava as escolas e centros de design baseava-se em críticas semelhantes. Era uma visão funcionalista, para a qual a forma das coisas deveria ser subordinada a uma função: nada de ficar adicionando detalhes visualmente interessantes ou ornamentos àquilo que se produz – morte ao ornamento! Morte ao supérfluo!

Nada de ficar adicionando detalhes visualmente interessantes ou ornamentos àquilo que se produz – morte ao ornamento! Morte ao supérfluo!

No outro polo estão os que veem o design como uma forma de aproximar os objetos das pessoas, seja por meio da adequação de uma forma ao corpo humano, seja tornando a aparência de algo mais agradável ao olhar, seja fazendo o objeto ocupar um lugar simbólico específico devido a suas formas.

Assim, a superfície e a superficialidade não são submetidas àquilo que tradicionalmente foi considerado como útil, sério, profundo e necessário. O design aqui pode ser pensado a partir de um referencial humanístico.

É a partir deste último referencial que uma filosofia do design ganha vida. Seu campo é a relação dos humanos com objetos e imagens, bem como dos humanos entre si, na medida em que tal relação é mediada por objetos e imagens.

Essa disciplina estuda também, naturalmente, qual o papel do design ao projetar as formas de tais objetos e imagens. O ponto a destacar é que uma filosofia do design não interessa apenas aos profissionais da área, mas a todos que convivem diariamente com produtos projetados por designers ou influenciados por suas propostas.

Não é à toa que dois importantes filósofos contemporâneos – Peter Sloterdijk e Bruno Latour – se envolveram com a filosofia do design. Sloterdijk é, desde 2001, reitor de uma universidade de artes e design e Latour, convidado para uma conferência sobre o tema, recorreu justamente a Sloterdijk para propor explicitamente “alguns passos na direção de uma filosofia do design”.  

Peter Sloterdijk
Para o filósofo alemão Peter Sloterdijk, estamos na era do design, da ‘permanente reinvenção do mundo’. Este é um dos tópicos do curso de filosofia do design, que começa no dia 13 de agosto.

Em seu texto intitulado A cautious Prometheus (Prometeu cauteloso, em português), Latour constata que a visão associada ao primeiro polo está desmoronando. Tal visão seria típica do que se convencionou chamar de ‘projeto moderno’, cujo antigo suporte a maioria dos filósofos e analistas sociais acredita ter se perdido. Assim, observa Latour, “a divisão tipicamente modernista entre materialidade, de um lado, e design, do outro, está se dissolvendo lentamente”.

Essa dissolução permite que encaremos nossas relações com os objetos e imagens – bem como com outras pessoas por meio dos objetos e imagens – de outra forma. As relações não são mais (felizmente) pautadas por referenciais totalizantes. A relação vale pela própria relação, e é isso que o design busca trazer para o primeiro plano. 

As relações não são mais pautadas por referenciais totalizantes. A relação vale pela própria relação, e é isso que o design busca trazer para o primeiro plano

Essa proposta – a de pensar o design a partir de um referencial filosófico – acompanha uma nova visão que também se revela nas formas contemporâneas de objetos e imagens. Ou seja, ao pensar sobre o design, encaramos as soluções projetuais como um ponto de convergência de diferentes referenciais em disputa nas controvérsias sociossimbólicas e sensíveis inerentes a qualquer proposta de ação sobre o mundo. Na prática, os designers, cada vez mais, propõem projetos que emergem principalmente das considerações de seus impactos humanos. A forma não segue mais a função, mas as fantasias, os afetos e os desejos.


Daniel B. Portugal
Professor no curso de Design/Comunicação Visual da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos coordenadores do site Filosofia do design e coautor do livro Existe design? Indagações filosóficas em três vozes.