Hoje é um dia excessivamente triste para a história da ciência no Brasil. Morreu Jayme Tiomno (1920-2011), que pode ser considerado o mais brilhante físico teórico do século 20 neste país.
Talvez, alguns, já de cara, protestem com a designação dada a esse carioca.
Poderiam citar, por exemplo, Mário Schenberg (1914-1990), que fez trabalhos importantes no início da década de 1940 com o ucraniano George Gamow e o indiano Subrahmanyan Chandrasekhar
A diferença entre esses dois grandes teóricos é que Schenberg, a partir de certo momento, passou a dedicar boa parte de seu tempo à política e às artes – nesse último campo, tornou-se crítico respeitável; no primeiro, foi deputado em 1946 pelo Partido Comunista.
Tiomno foi diferente. A vida para ele era física, física e física. Aconselhava os jovens que caíam sob sua tutela – Sarah Castro Barbosa, por exemplo – a nem mesmo namorar. Na formação, deveriam ter coração e mente voltados apenas à física.
Diferentemente de Schenberg, Tiomno deixou discípulos que estão hoje fazendo física de boa qualidade – o físico pernambucano não era muito afeito a orientar alunos. Já Tiomno gastou boa parte do seu tempo para aperfeiçoar o ensino de física no Brasil, escrevendo textos didáticos e modernizando laboratórios. Em relação a isso, há um belo depoimento dele para uma publicação do CBPF.
Da física de partículas à relatividade geral
Tiomno foi um teórico de largo espectro. Passava da física de partículas para a relatividade geral como se troca de sapatos. Em ambos, era magistral. Deu contribuições realmente importantes às duas áreas. Nesse sentido, nos faz lembrar Paul Dirac, que transitava entre as minúcias do mundo subatômico e as relações entre espaço e tempo com a mesma naturalidade com que ficava calado.
Tiomno é filho daquele entusiasmo pela ciência – principalmente pela física nuclear – que tomou conta do mundo – e do Brasil – depois da Segunda Guerra Mundial. Na segunda metade da década de 1940, embarcou para um doutorado na prestigiosa Universidade de Princeton. Lá, trabalhou com John Wheeler (1911-2008).
Em 1948, ao chegar em Princeton, Tiomno escutou de Wheeler, cuja fama era de ‘durão’, que ele, Wheeler, costumava trabalhar muito – talvez, algum preconceito residual contra um físico que, afinal das contas, vinha de um país sem tradição científica e com fama de festeiro e pouco afeito a compromissos sérios. Mais tarde, Tiomno repetiu as seguintes palavras ditas a ele por Wheeler: “Nunca trabalhei tanto na minha vida!”. Esse era o lado ‘rolo compressor’ de Tiomno.
Wheeler magnanimamente atribuiu a Tiomno as principais ideias que levaram a resultados importantes obtidos pela dupla. Um desses resultados é conhecido como triângulo de Puppi-Wheeler-Tiomno – que, mais tarde e injustamente, virou só ‘triângulo de Puppi’. O próprio Wheeler tratou de reparar esse erro histórico. Para ele, como disse em depoimento, o correto seria apenas ‘triângulo de Tiomno’. Palavras de Wheeler:
“Eu sempre pensei que esse triângulo deveria ser chamado o Triângulo Tiomno. Ele foi o primeiro a obtê-lo. Poucos meses depois de nosso artigo ter aparecido, Giampietro Puppi publicou ideias similares em uma revista italiana. Ele, também, viu a grande simplicidade de uma interação comum entre núcleons, elétrons, múons e neutrinos. Desafortunadamente, o Triângulo Tiomno é agora conhecido como o Triângulo Puppi, mesmo Puppi não tendo incluído um diagrama em seu artigo.”
Essa história está detalhada em dois bons artigos, de autoria de Olival Freire Júnior, da Universidade Federal da Bahia, e José Maria Filardo Bassalo, da Universidade Federal do Pará.
Força fraca
Posto de modo simples, para nosso propósito aqui, o triângulo de Tiomno tem a ver com a desconfiança dos físicos, surgida a partir da década de 1930, de que haveria uma quarta e última força na natureza, além da gravitacional, eletromagnética e forte.
A primeira teoria sobre a força fraca foi do físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), que propôs um modelo para explicar o modo como um nêutron no núcleo atômico se transforma (decai, no jargão da física) em um próton, um elétron e um antineutrino (partícula extremamente fugidia).
A partir do início da década seguinte, os físicos começaram a notar que outras partículas decaíam de modo semelhante por meio desse mecanismo envolvendo a força fraca. O caso emblemático foi o múon, um ‘primo’ mais pesado do elétron.
Assim, aquela força parecia ser universal e estar por trás de vários fenômenos do mundo subatômico. Tiomno foi um dos pioneiros a mostrar que isso era verdade: a força fraca, que só age no âmbito do núcleo atômico, era universal.
Tiomno voltou de Princeton com o terceiro doutorado formal da física brasileira – sendo o primeiro de José Leite Lopes (1918-2006) e o segundo de Sonja Ashauer (1923-1948), que fez o doutorado com Paul Dirac, em Cambridge (Reino Unido), e que morreu jovem, de forma misteriosa.
Foi à época um trabalho muito importante e é certo que Tiomno nunca recebeu o devido crédito por sua participação decisiva nessa teoria – foi o preço pago por ser cientista de Primeiro Mundo trabalhando no Terceiro Mundo. Menos mal que historiadores da física no Brasil tenham revisitado essa passagem.
Rixa e perseguição
Tiomno foi um dos fundadores do CBPF, formando a famosa tríade Lattes-Leite-Tiomno. A história deste país não fez jus a um dos vértices desse triângulo. Tiomno não teve a fama que César Lattes (1924-2005) ganhou – merecidamente – por seus feitos no pós-guerra, e nem tinha a eloquência que rendia dividendos políticos (e inimizades) a Leite. Era brilhante, porém reservado. Trabalhava calado, publicando e orientando.
É interessante ver como Lattes e Tiomno eram, na segunda metade da década de 1940, amigos com certa intimidade. Isso fica comprovado pelas cartas, em tom bem informal (muitas com palavrões contra burocratas norte-americanos no período que Tiomno estava em Princeton), que estão depositadas no Arquivo César Lattes no Siarq, da Unicamp.
Era, realmente, uma conversa de camaradas, amigos do peito, de dois físicos que queriam o melhor para a ciência e o povo brasileiro. Pena que essa relação tenha azedado. Parte da culpa vinda da dificuldade de se lidar com Lattes quando esse estava em crise por conta de seu transtorno mental; parte dela pelo fato de Tiomno ter se inscrito em um concurso no Instituto de Física da USP que havia sido aberto para Lattes. A relação entre esses dois grandes físicos nunca voltou a ser a mesma.
Tiomno foi cassado pela famigerada ditadura militar, apesar de não ser ‘stalinista’, como Lattes gostava de se classificar, nem ter a fala aberta, crítica e direta de Leite – este também obrigado a sair do Brasil por conta de seus ataques ao regime.
No caso de Tiomno, quase um apolítico, o que contou foi a mentalidade de ‘terra arrasada’ daqueles anos de exceção: qualquer ser bem pensante nas universidades ofendia a burrice de golpistas arrogantes.
Tristeza em dose tripla
A revista Ciência Hoje deve fazer um mea-culpa. Fez o perfil, ao longo de seus quase 30 anos, dos principais nomes da ciência do Brasil. Faltou Tiomno. Não por descaso, mas sim porque o gravador usado na longa entrevista teimou em cometer mais uma injustiça com nosso grande teórico: não registrou sua fala.
Várias outras tentativas foram feitas, mas, infelizmente, não foi possível. A Ciência Hoje tem por obrigação entrevistar Elisa Frota-Pessôa, pioneira da física experimental no Brasil. Ambos se casaram na década de 1950 e, nestes últimos 60 anos de união, realizaram feitos científicos de porte.
Elisa foi chefe da Divisão de Emulsões Nucleares do CBPF. Foi de lá que saiu o primeiro trabalho (sobre o modo como o méson pi decaía) no qual se lia abaixo do nome dos autores: ‘Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas’. Por sinal, a seguinte história é contada: se Tiomno tivesse olhado com mais cuidado os resultados desse artigo, feito por Elisa e pela física Neusa Margem, ele teria chegado à teoria da força fraca bem antes que seus concorrentes. Se verdadeira, é então grande peça que a vida prega.
Hoje é mais do que um dia triste. É triplamente triste, porque nos lembra que a grande tríade Tiomno-Leite-Lattes não está mais aqui. Especialmente triste, porque grande parte dos físicos brasileiros mal sabe quem foi e o que fez cada um dos nomes nos vértices desse triângulo.
A razão é que, em muitos casos, não estamos formando físicos, mas sim técnicos com PhD, cujo desconhecimento da história da própria área é tão grande quanto a vontade de se transformar em um grande cientista. Poucos, porém, chegarão lá.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ
A Ciência Hoje On-line recebeu a notícia sobre o falecimento de Jayme Tiomno por Ronald Shellard, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que lamentou o acontecimento e lembrou da importância do físico para a ciência:
“O professor Jayme Tiomno foi um dos físicos da geração heróica da ciência brasileira, que ajudou, em fins da década de 1940 e início dos anos 1950, a construir as instituições que se tornariam o alicerce do sistema de ciência e tecnologia do país.”
Shellard, que chegou a participar de um curso sobre relatividade geral ministrado pelo físico na Escola Politécnica da USP, na década de 1960, destaca ainda o papel importante de Tiomno na formação de recursos humanos:
“Não fui aluno dele, mas dizem que suas aulas eram muito difíceis e ao mesmo tempo estimulantes. É que ele era muito exigente e as pessoas tinham que estudar muito para acompanhar o seu raciocínio.”
Mario Novello, também físico do CBPF, destacou, em depoimento para a CH On-line, a importância de Tiomno como formador de pesquisadores:
“Em 1964, Tiomno selecionou pessoas do Brasil inteiro e, junto com Roberto Salmeron, levou para concluir o curso de física na Universidade de Brasília. Só que houve uma invasão e a instituição foi fechada. Tivemos que voltar. Foi então que ele começou todo um processo de formação aqui no CBPF.”
Novello, que foi aluno de Tiomno na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual UFRJ, também falou da importância do físico, que fez pós-graduação nos Estados Unidos, voltar e se estabelecer no Brasil.
“Ele, que poderia ter ficado lá fora, como fizeram muitos pesquisadores brasileiros, resolveu voltar pro Brasil. Isso foi muito importante para a minha e para muitas gerações de cientistas brasileiros. Sem a volta dele e de outras pessoas desse nível, nada disso aqui seria possível.”
Mario Novello e Jayme Tiomno desenvolveram vários trabalhos em conjunto, embora não fossem exatamente da mesma área. “Consegui atraí-lo para a cosmologia”, afirma Novello, que, por coincidência, está, neste momento, trabalhando exatamente com a teoria da força fraca de Tiomno. “É como se eu estivesse fazendo o caminho contrário dele. Curioso, né?”
Redação CH On-line