Diálogo possível

A ciência tem muito a aprender com os sistemas indígenas de cura e cuidados, coletivamente chamados de medicina tradicional (embora englobem muito mais do que apenas a saúde física dos indivíduos). Essa nova perspectiva deve levar a uma reavaliação das relações entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais e pode ajudar a ciência a superar questionamentos com que se depara atualmente. 
 
Esse ponto de vista foi defendido pela médica e antropóloga Maria Luiza Garnelo Pereira, professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, em uma conferência sobre medicina e cura na Amazônia durante a 61ª reunião anual da SBPC. 
 
A tecnociência, explica Garnelo, se baseia em fundamentos como a separação entre sujeito e objeto do conhecimento e a consideração da natureza como objeto. Ela é muito eficiente para resolver problemas e garantir a subsistência humana, mas tem se mostrado pouco eficaz para reduzir iniquidades sociais ou para restaurar as relações entre o geral e o específico. “Esse modelo, onde saber gera poder econômico, é insustentável e está passando por um momento de questionamento”, explica Garnelo. 

 

A antropóloga citou como contrapartida o pensamento mítico da etnia Baniwa, que habita a região do rio Negro. Esse povo vê a natureza como um sistema de vários sujeitos e não apenas um – os humanos –, como considera o pensamento científico. 
 
A ciência vê uma onça como um organismo biologicamente similar ao humano, mas a trata como um animal desprovido de consciência, diferente de nós em sua essência – em suma, como um objeto. 
 
Para os Baniwa, é o oposto: eles não reconhecem as onças como seres fisicamente similares, mas atribuem-lhes consciência e lidam com elas como sujeitos plenos. O mesmo tipo de raciocínio se aplica a árvores, espíritos e outras entidades. 
 

“Tudo é negociado” 

“Para os Baniwa não há acaso, tudo é negociado”, explica Garnelo. “O surgimento de doenças é fruto das relações do indivíduo com sua comunidade e seu ambiente, não da anormalidade de órgãos e funções do corpo.” Essa concepção tem um alcance bem mais amplo, que envolve política e a circulação de bens entre os membros da comunidade. “A ‘medicina’ tradicional nesse caso abrange temas como relações de conflito, guerra, arte, xamanismo e cuidados de saúde, entre outros”, destaca a antropóloga. 
 
Segundo Garnelo, o sistema de conhecimento dos Baniwa se assemelha à abordagem ecossistêmica da saúde (ou ecossaúde), na qual os determinantes das doenças são vistos de maneira integral, levando em conta a ação dos indivíduos sobre o ambiente para analisar as condições de vida das populações. “Para entendermos a saúde e doença de um povo, temos que compreender seu modo de vida”, defende. 
 
Ela conta que, durante muito tempo os sistemas de conhecimento indígenas foram vistos de maneira inferior, mas que, na verdade, configuram uma forma de representação do saber que se perdeu da ciência tradicional e que novas teorias estão resgatando. “Temos que refletir sobre como valorar esses conhecimentos tradicionais indígenas e sobre como melhorar a interação entre esse saber e o científico”. 

 
 
Fred Furtado 

Ciência Hoje / RJ 
14/07/2009 
 
Confira a cobertura completa da 61ª Reunião Anual da SBPC