Direito à vida e práticas tradicionais

Direitos humanos e o embate entre visões universalistas e relativistas

A história da luta por direitos humanos sempre vivenciou embates entre visões universalistas e relativistas, entre a defesa de regramentos internacionais e a proteção das práticas e culturas locais. A luta por direitos humanos sempre foi a luta de grupos sociais por respeito e garantia de direitos, pelo direito à diferença, mas sem dúvida também um processo de universalização, de cima para baixo, de preceitos e direitos dos países ocidentais sobre os demais povos e culturas.

Não há como tratar do tema de direitos humanos sem enfocar seus conflitos fundadores básicos, que refletem a própria matriz teórica que os sustenta, ora a partir de uma filosofia política kantiana e liberal, ora a partir de uma teoria política crítica, em que a garantia de um direito implica a retirada de outro.

Ao longo da história, a preservação do direito à vida sempre foi colocada em primeiro lugar em códigos e ordenamentos jurídicos. Em matéria de universalização de direitos, o direito à vida juntamente com a garantia de liberdade (em um sentido liberal ligado à preservação da propriedade privada) são os pilares modernos do que chamamos direitos humanos.

Todo o desenvolvimento posterior, que passa a incluir no rol de direitos humanos direitos sociais e políticos, pode implicar uma flexibilização do direito à liberdade, mas nunca uma flexibilização ao direito à vida. Todavia, é parte dessa evolução justamente a inclusão da cultura como direito humano.

É no âmbito dessa batalha que se inscreve a chamada Lei Muwaji (Projeto de lei nº 1057, de 2007, em tramitação na Câmara dos Deputados, com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça em 23 de novembro de 2012). Trata-se de projeto de lei que dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas. 

Todo esse debate leva à reafirmação de que apenas legislações não bastam para a proteção e garantia de direitos humanos, especialmente de povos em condição de vulnerabilidade

Em resumo, reafirma o respeito às práticas tradicionais indígenas, desde que em conformidade com os direitos humanos fundamentais, considerando nocivas práticas como homicídios de recém-nascidos, abuso sexual, maus-tratos, bem como outras agressões à integridade físico-psíquica de crianças.

O projeto, que iniciou prevendo a criminalização das práticas, responsabilizando por omissão de socorro qualquer pessoa que tenha conhecimento de fatos, sofreu alteração ao longo da tramitação, pela emergência de posições críticas ao tratamento etnocêntrico dado à questão, especialmente por parte de associações acadêmicas, como a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A redação final do texto reafirma o respeito e o fomento às práticas tradicionais indígenas, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções internacionais sobre os direitos humanos.

Todo esse debate leva à reafirmação de que apenas legislações não bastam para a proteção e garantia de direitos humanos, especialmente de povos em condição de vulnerabilidade, sejam populações tradicionais ou urbanas. São necessárias políticas públicas específicas, que resguardem as culturas locais, ao mesmo tempo em que garantam condições de bem-estar a todas as parcelas dessa população, incluindo-se crianças e adolescentes, cujo direito maior, de cunho nacional, integra-os como detentores de direitos de proteção integral.

Lígia Mori Madeira é professora do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Arma de acusação e perseguição social

Proposto em 2007 pelo deputado Henrique Afonso, o projeto da Lei Muwaji vem ganhando relevância nos meios de comunicação e entre importantes atores da sociedade civil. Algumas notícias e matérias televisivas foram veiculadas ao longo desses seis anos e um documentário foi produzido para a divulgação e sensibilização para a defesa do projeto.

Em 2009, o senador Aloizio Mercadante propôs a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente incluindo neste um artigo especial destinado à proteção à criança e ao adolescente indígena.

Mas o que se apresenta como uma causa nobre – a defesa à vida e aos direitos humanos – pode facilmente transformar-se, no caso de populações vulneráveis e historicamente estigmatizadas, em uma arma de acusação e perseguição social e política.

Segundo o censo de 2010, a população indígena brasileira é formada por 238 povos, com cerca de 900 mil pessoas, das quais aproximadamente 320 mil vivem em cidades. Ao propor um projeto de lei de combate ao infanticídio entre populações indígenas, de que índios estamos falando? Daqueles descritos nas crônicas do século 16?

gravura de Theodor de Bry
Para a antropóloga Rita Santos, ainda é presente no imaginário nacional a representação dos indígenas construída pelos viajantes do século 16, como o desta gravura de Theodor de Bry, que retrata ritual de canibalismo dos tupinambás.

Essas narrativas foram produzidas por autores imbuídos de etnocentrismo ferrenho, que descreviam esses grupos como animalescos e primitivos. O romantismo brasileiro, por sua vez, cunhou em todos nós, especialmente por meio de sua inserção na educação e na historiografia brasileiras, uma percepção sobre o indígena igualmente falseada. Esse imaginário nacional, que remete a florestas, povos incultos e com hábitos bem diferentes dos nossos, ainda reverbera sem que nos demos conta disso.

Mas, como apontam os censos demográficos, essa imagem não corresponde à realidade. Um terço dos grupos indígenas mora em cidades e está, em sua maioria, inserido nas redes escolares e de trabalho. Esse é o primeiro ponto para começarmos a questionar o projeto de lei proposto. O infanticídio enquanto prática pertence a uma história remota, não ao universo contemporâneo desses grupos.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgãos responsáveis pela administração e monitoramento das políticas públicas voltadas a esses grupos, já declararam algumas vezes não possuir dados relevantes sobre essa prática. As associações indígenas igualmente não reconhecem o infanticídio como parte da tradição ou cultura indígena.

Dizer que os indígenas assassinam as suas crianças é uma das maiores ofensas que se pode fazer a essa população. Para eles, inclusive, o cuidado com as crianças é de responsabilidade de todo o grupo e não apenas dos pais. Por isso, não se veem entre eles crianças abandonadas, mendigando comida ou em situação de submissão e exploração, como infelizmente observamos nas ruas das nossas grandes cidades. As crianças indígenas são muito amadas e queridas entre os seus parentes, como eles chamam a todos que compartilham a sua etnia. 

Dizer que os indígenas assassinam as suas crianças é uma das maiores ofensas que se pode fazer a essa população

Não podemos deixar que os índios como eram vistos por Jean de Léry ou André Thévet guiem a legislação brasileira. Devemos ter em mente a pujança e força das etnias Ticuna, Guaranis-Kaiowá, Terena, Fulni-ô, Tapeba e de todos os povos indígenas que construíram o Brasil. O apoio ao projeto de Lei Muwaji não defende o valor da vida como superior ao da cultura, como foi dito, e sim reforça o preconceito contra essas populações, permitindo que um estigma histórico venha a ser atualizado contra esses grupos.

Mais do que constituir redes de proteção à criança indígena, devemos lutar contra os inúmeros assassinatos cometidos contra suas famílias. Devemos buscar combater a grilagem de suas terras e a opressão à sua cultura. Basta lembrar dos altos índices de desnutrição entre as crianças em muitas aldeias e das situações de perseguição que têm levado inúmeros jovens a se suicidarem.

Garantir os direitos humanos fundamentais à criança e ao jovem indígena é buscar melhores condições para todo o grupo, com suas terras demarcadas, saúde e educação diferenciadas para que eles possam crescer conscientes de que ser indígena é ser parte da população que construiu o Brasil e, por isso, motivo de orgulho para todos nós.

Para proteger a criança indígena, não é preciso escolher entre a cultura e a vida (mesmo porque a cultura é parte da vida), basta permitir que ela cresça entre os seus, onde esses dois elementos se combinam.

Rita Santos é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro