Do amadorismo ao alto rendimento

Quando o barão de Coubertin reinaugurou os Jogos Olímpicos e reinventou seus ideais, a proposta era uma disputa de atletas amadores, em pé de igualdade, para descobrir os mais fortes, rápidos e habilidosos entre eles. Pouco mais de um século depois, o esporte de ‘alto desempenho’ pouco guarda de seus primórdios amadores: é disputado por profissionais, supermáquinas imersas na alta tecnologia que levam seus corpos ao limite. Tais mudanças drásticas são explicadas em grande parte pelas transformações e pressões políticas e sociais que reorientaram o espírito olímpico ao longo dos anos.

Ainda na década de 1920, o contexto político já influenciava a competição: a Alemanha e seus aliados na Primeira Guerra Mundial ficaram de fora dos Jogos da Antuérpia, na Bélgica. Mais tarde, a disputa entre Estados Unidos e União Soviética trouxe a Guerra Fria para o esporte, pontuando a competição com investimentos e boicotes de ambos os lados.

O bom desempenho pouco a pouco passou a ser associado à superioridade de países e até de ‘raças’

No início do século 21, a ascensão da China como potência esportiva foi uma clara demonstração de força de uma nova potência econômica mundial. O bom desempenho pouco a pouco passou a ser associado à superioridade de países e até de ‘raças’ – basta lembrar a contrariedade do regime nazista com as medalhas de ouro do negro norte-americano Jesse Owens em Berlim (1936).

Ao longo desse período, o esporte foi lentamente se transformando por pequenos e grandes avanços tecnológicos. “As primeiras provas de salto femininas eram realizadas de saia e, no ciclismo, as bicicletas tinham rodas enormes e eram guiadas quase de pé, por exemplo; logo, havia um campo bem grande para aperfeiçoamentos simples”, recorda o engenheiro biomédico Alexandre Pino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Tiro com arco e tênis
A tecnologia modificou por completo praticamente todas as modalidades esportivas ao longo do último século. No tiro com arco e no tênis, por exemplo, novos materiais mais leves e resistentes, vestimentas específicas e a própria análise detalhada dos movimentos dos atletas abrem um abismo em relação à prática do passado. (fotos: Wikimedia Commons)

Além da melhoria dos equipamentos, começaram a ser introduzidas novidades como aparelhos de photo finish, que tiravam fotos da linha de chegada para apontar os vencedores em provas de atletismo.

O fim do amadorismo

As maiores mudanças no esporte, no entanto, só aconteceram realmente na década de 1980. Até então, o ganho com a prática esportiva olímpica era considerado passível de punição: o atleta deveria ser amador, ou seja, não podia lucrar com seu desempenho. Tal norma criou muitos episódios polêmicos, da cassação de medalhas a denúncias de pseudoamadorismo (atletas inscritos com profissões quaisquer, mas pagos por seus países apenas para treinar).

Um desses episódios envolveu, inclusive, o campeão brasileiro do salto triplo Adhemar Ferreira da Silva, lembra a psicóloga e educadora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP). “Quando conquistou sua primeira medalha, houve uma campanha de um jornal do Rio de Janeiro para angariar dinheiro para presenteá-lo com uma casa, que ele recusou, pois poderia ser proibido de competir”, recorda. A decisão parece ter sido acertada: Adhemar foi bicampeão em 1956.

Apesar da proibição, no entanto, desde os anos 1950 já acontecia o que Rubio chama de ‘amadorismo marrom’: uma disputa de bastidores entre as grades empresas pelos melhores atletas. “No pós-guerra, a Adidas e uma dissidência dela, a Puma, disputaram esse mercado, mas sempre de forma velada”, explica. “Um episódio emblemático foi quando o nadador Mark Spitz, vencedor de sete medalhas de ouro nos Jogos de 1972, foi ao pódio com tênis no pescoço. Muitos acharam uma excentricidade, mas era propaganda.” Ainda havia espaço, porém, para façanhas como a do etíope Abebe Bikila, que venceu, descalço, a maratona das Olimpíadas de 1960, em Roma.

Abebe Bikila
Na década de 1960, apesar de a tecnologia já se mostrar um diferencial competitivo importante, ainda havia espaço para façanhas como a do desconhecido etíope Abebe Bikila, que venceu, descalço, a maratona das Olimpíadas de Roma. (foto: Comitato organizzatore dei Giochi della XVII Olimpiade)

O fracasso econômico dos Jogos de Montreal (1976) foi o tiro de misericórdia no amadorismo, até então defendido por personalidades como o norte-americano Avery Brundage, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) de 1952 a 1972. A partir da chegada do espanhol Juan Antonio Samaranch à direção da entidade, em 1980, a marca olímpica passou a ser explorada comercialmente e os Jogos foram abertos à iniciativa privada e passaram a aceitar profissionais.

“Isso acarretou uma enorme mudança nas Olimpíadas: hoje a tecnologia e a TV são indissociáveis de seus resultados ‘espetacularizados’ e o esporte se afastou de suas origens amadoras”, avalia Rubio. Uma olhada rápida no mercado esportivo mostra a enormidade das cifras movimentadas mundialmente: marcas internacionais como a Nike, líder do setor com um lucro de 537 milhões de dólares só no último semestre de 2013, patrocinam atletas, seleções e clubes e têm alguns dos maiores laboratórios esportivos do mundo.

Estádio Olímpico de Montreal
O Estádio Olímpico de Montreal, obra arquitetônica impactante construída para as Olimpíadas de 1976, no Canadá, se tornou o grande símbolo dos Jogos: seus custos foram exorbitantes (cerca de 1,5 bilhões de dólares canadenses) e a construção de sua torre inclinada (uma das maiores do mundo) e do teto retrátil só foi terminada bem depois da competição. (foto: Wikimedia Commons/ storem – CC BY-SA 2.0)

Essa trajetória pode ser observada no próprio perfil dos atletas olímpicos do Brasil. A pesquisadora, que em seu trabalho de resgate da história social dos atletas brasileiros nos Jogos já entrevistou mais de mil de nossos representantes, observa uma mudança entre as primeiras décadas olímpicas (1920 e 1930), quando eram todos membros da aristocracia ou militares, para os anos 1940 e 1950, quando as camadas populares começaram a aparecer com mais destaque. “Outra mudança radical ocorreu nos anos 1980, com o processo de profissionalização, cujos impactos dessa transformação ainda estão sendo sentidos”, acrescenta.

No esporte paraolímpico, a história é parecida, porém bem mais recente. Criados em 1972 apenas para atletas com lesão medular, só em sua segunda edição os Jogos Paraolímpicos passaram a aceitar pessoas com paralisia cerebral, problemas de visão e amputados. “Apenas em 1988 começaram a surgir próteses de corrida e as cadeiras de rodas desportivas apareceram só na década de 1990”, recorda o educador físico Ciro Winckler, coordenador técnico de atletismo do Comitê Paralímpico Brasileiro. “A década de 1990 trouxe o fim do romantismo no esporte paraolímpico, começaram a surgir os atletas de ponta e a competição de altíssimo nível, processo similar ao que as Olimpíadas viveram muito antes”, avalia. “Só então a alta tecnologia começou a modificar fortemente essas modalidades.”

Constante aprimoramento

Com a abertura do mercado esportivo para o capital privado, ocorreu uma enorme injeção de tecnologia no esporte, com investimentos cada vez maiores e intercâmbio com outras áreas de ponta – ainda na década de 1970, o conhecimento gerado no âmbito da corrida espacial começou a ser empregado em equipamentos para esportes como salto, iatismo, remo e tênis.

Ainda na década de 1970, o conhecimento gerado no âmbito da corrida espacial começou a ser empregado em equipamentos para esportes como salto, iatismo, remo e tênis

“Experimentamos grandes avanços em áreas como tecnologia dos materiais, design e aerodinâmica; a fibra de carbono, por exemplo, permitiu a criação de novas raquetes, barcos e bicicletas, com uma aerodinâmica otimizada”, avalia Steve Haake, diretor do Centro de Pesquisa em Engenharia Esportiva da Universidade Sheffield Hallam (Inglaterra). “O mais curioso é que o esporte de ponta é um dos primeiros a se apropriar de diversas tecnologias, como a fibra de carbono: afinal, raquetes com esse material vieram bem antes de aeronaves.” O britânico destaca, ainda, que a redução dos custos de produção com a mudança das fábricas para países como a China, a partir da década de 1980, facilitaram esse processo.

Nesse novo ambiente esportivo, Haake acredita que o grau tecnológico de cada esporte está implícito em suas regras. A Fórmula 1, por exemplo, é definida como um conjunto de piloto talentoso e máquina perfeita. Já o atletismo se resume a um corredor e seus sapatos, no fim das contas. “Na natação, o uso de trajes especiais, que reduziam o arrasto hidrodinâmico, foi sancionado em 2000”, recorda. “Em 2009, a tecnologia foi banida, pois os modelos mais novos levaram à derrubada de muitos recordes. Porém, se a decisão fosse outra, as performances teriam se estabilizado em um novo patamar em alguns anos.”

Para Haake, a única forma de equiparação em esportes mais tecnológicos, como remo, ciclismo ou bobsled (competição de alta velocidade com trenó), seria adotar equipamentos padronizados. “Se isso não ocorre, implicitamente aquele esporte está sendo definido como um conjunto de atleta de ponta e de equipamentos de primeira”, avalia.

Vôlei
As mudanças no vôlei ilustram a adaptação do esporte à tecnologia e às transformações da sociedade. Com jogadores mais altos e intenso treinamento, a rede foi elevada e a pontuação alterada para deixar o esporte mais dinâmico. Já as quadras foram adaptadas para evitar lesões e prolongar as carreiras dos atletas. (foto: Flickr/ travellingred – CC BY-NC-SA 2.0)

Alexandre Pino destaca o exemplo do vôlei para analisar o papel das inovações e da adaptação das regras, quando necessário. “Quando a manchete foi inventada, na década de 1960, foi algo revolucionário, todos aprenderam logo a novidade, validada pelas regras”, lembra. “Já as mudanças na década de 1990 foram resposta a transformações da sociedade: com atletas cada vez mais altos, a altura da rede subiu e a lei da vantagem foi abolida. Quando um esporte começa a ficar chato, as regras tendem a ser mudadas.”

Treino de alto nível

Além de gerar materiais sofisticados e desenhos especiais, nas últimas décadas a tecnologia está cada vez mais influindo na preparação dos competidores. “Sem dúvida a nova revolução é a informação; o desenvolvimento de smartphones, sensores de baixo custo, como giroscópios e acelerômetros, e leitores de movimento, como o kinect, tem revolucionado nosso saber sobre o corpo”, analisa Haake.

Com um treinamento altamente monitorado e aprimorado, o avanço deixa de se basear em ‘tentativa e erro’ e ganha embasamento tecnológico, o que impacta a performance de todo atleta de alto rendimento. “Quanto mais longe os atletas do topo vão, mais longe os demais também chegam; todos correm mais porque treinam mais e têm acesso à tecnologia”, diz Pino. “O recorde dos 100 m de 1900 é um tempo que eu poderia fazer na escola, com 20 anos – a diferença é que eu não corria sem sapatos, em uma pista precária, com roupas inadequadas e sem uma posição de saída correta.”

Tamanha inovação tecnológica também tem contribuído muito para a prevenção de lesões e para a extensão das carreiras em muitas modalidades

Tamanha inovação tecnológica também tem contribuído muito para a prevenção de lesões e para a extensão das carreiras em muitas modalidades. “A simples substituição de pisos de madeira e cimento das quadras de vôlei por pisos emborrachados, que absorvem impacto, preserva mais os atletas”, avalia Pino. “E são tecnologias que acabam expandidas para o dia a dia, aplicadas nos pisos de academias e nos calçados esportivos, por exemplo.”

Para o especialista em biomecânica Ricardo Barros, da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o desafio perseguido pelas tecnologias atuais é entender mais sobre os mecanismos de lesão e de prevenção. “Medir e quantificar o corpo humano é algo muito complexo: ao tensionar um cabo de aço em laboratório, sabemos quando vai arrebentar”, pondera. “Porém, estruturas humanas, como tendões, têm resistência muito diferente em situações reais, pois nosso corpo é uma máquina viva, dinâmica, e é isso que se tem tentado cada vez mais compreender e estudar.” Ele lembra o caso do ex-jogador de futebol Ronaldo, que, depois de passar por uma cirurgia no joelho direito, acabou lesionando gravemente o mesmo joelho em sua partida de retorno.

O engenheiro biomédico Orivaldo Silva, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, também lembra outro caso recente para destacar os desafios dessa área da medicina esportiva: o do lutador de MMA Anderson Silva, que quebrou a perna ao aplicar um chute em uma luta pelo título mundial de sua categoria em dezembro de 2013. “Esse caso mostra como às vezes maximizar o desempenho pode aumentar a propensão à lesão”, diz. “Mas a tendência é que a tecnologia otimize cada vez mais a movimentação do atleta, de forma que ative o mínimo possível os mecanismos de lesão”, completa.

Este é o terceiro texto da série especial ‘Supermáquinas do esporte’, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line