Para compreender a obra de Wassily Kandinsky (1866-1944), é preciso mais do que simplesmente contemplá-la. A explosão de cores e formas do precursor do abstracionismo assegura uma emoção arrebatadora ao espectador, sem dúvida. Mas conhecer os passos e saltos de sua trajetória é um auxílio valioso no entendimento de sua criação artística. Na exposição ‘Kandinsky: tudo começa num ponto’, aberta ao público a partir de amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, esse resgate histórico e biográfico ganha destaque. Pela primeira vez na América Latina, a mostra reúne peças da rica coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo e de mais sete museus russos.
Com curadoria de Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky, a exposição foi dividida em cinco blocos temáticos, que vão das raízes da obra de Kandinsky em relação à cultura popular e ao folclore russo, passando pela influência do xamanismo do norte da Rússia, pelas suas experiências artísticas e sua vida na Alemanha e pela sua busca dialógica entre música e pintura, até chegar às representações e tendências abstracionistas do artista e de seus contemporâneos.
“O projeto começou a ser idealizado há cinco anos”, conta o cubano Rodolfo de Athayde, diretor geral da exposição. “É muito difícil negociar o empréstimo das obras de Kandinsky, além de exigir grande volume de recursos. Por isso, ter uma coleção desse porte, percorrendo quatro cidades brasileiras durante 11 meses, é uma oportunidade única”, comemora.
A mostra concentra um período no qual Kandinsky trabalhou na Rússia e na Alemanha, indo e voltando, até sua saída definitiva do país natal, em 1922. “Procuramos apresentar todas as temáticas e tendências estéticas com as que ele conviveu”, diz a curadora russa Evgenia Petrova. “Sua obra é multifacetada, com grande influência da arte popular russa e alemã.”
Petrova explica que, ao selecionar obras para a exposição, recorreu às memórias do artista, Degraus, a artigos e catálogos das exposições organizadas durante sua vida, especialmente ‘O cavaleiro azul’ e o ‘Salão de Izdebsky’. “O contexto em que Kandinsky se formava como artista plástico é um fator muito importante para entender sua obra”, diz a curadora.
Mesmo que as fronteiras dos blocos expositivos sejam tênues, é possível distinguir um primeiro período em que Kandinsky sai em busca de seus antepassados, na Sibéria, e entra em contato com a iconografia popular russa. Formado em direito e atuando como jurista e etnógrafo, o artista visita, aos 30 anos, os povos do norte da Rússia e fica impactado com os tapetes e utensílios multicoloridos quase onipresentes nas casas dos camponeses. “É esse turbilhão de cores girando em sua volta que Kandinsky quer pintar”, diz Athayde.
Alguns desses objetos populares que o pintor colecionava também fazem parte da mostra. Há ícones do século 17 e um São Jorge, pintado por ele em 1911, que recupera a expressão pictográfica daquele período, marcado por um forte cromatismo de bases douradas e aplicações em vermelho e azul.
A vida na Alemanha
Outro bloco da mostra é dedicado aos artistas simbolistas que costumavam expor junto com Kandinsky, mas que se mantiveram mais figurativos. Aparecem nas suas obras e nas de seus contemporâneos traços da tentativa de diluir o realismo e a representação pura, assim como o conceito de musicalidade na pintura. Um vídeo apresenta o contexto da época, sustentando a importância do simbolismo naquele momento.
Nessa área expositiva, destacam-se três trabalhos de Kandinsky pintados durante sua vida na Alemanha, para onde se muda em 1900 com o objetivo de estudar pintura na Academia de Artes de Munique. Um deles é a casa onde viveu em Murnau, na Baviera, conhecida na região como ‘a casa russa’. O quadro de cores vivas e figuras ainda distinguíveis – Paisagem de verão (Casas em Murnau) – concentra essa transição entre a representação e a abstração.
É na Alemanha que Kandinsky funda o Cavaleiro Azul, movimento que busca espaços de expressão e reflexões teóricas sobre arte. De inspiração expressionista, o grupo, formado em 1911 por emigrantes russos e alemães em Munique, opunha-se ao cubismo: reconhece sua ação renovadora, mas contesta seus fundamentos racionalistas, propondo a construção de uma arte pessoal e espiritual.
Seguindo certa cronologia, a mostra nos conduz a uma sala dedicada às belíssimas pinturas do Kandinsky sobre vidro, técnica da cultura popular russa e alemã, que, embora figurativas e ilustrando lendas russas, são posteriores às experimentações abstratas. “No entanto, é possível encontrar nelas elementos abstratos presentes em outros quadros do artista”, aponta Athayde. “Essas quatro peças de vidro raramente saem da Rússia, são difíceis de serem transportadas, porque quebram facilmente”, acrescenta Petrova. Dialogam com elas quadros da segunda mulher do artista, a alemã Gabriele Münter.
Xamanismo e música
Em seguida, uma área aparentemente estranha, com vestuários, instrumentos e objetos populares, apresenta o universo espiritual que inspirava Kandinsky. “Ele se interessava pelas tradições dos povos primitivos russos, que lembram seus antepassados da Sibéria, onde o xamanismo era muito forte”, relata Petrova. Em viagens feitas entre 1892 e 1898, conheceu essa cultura que teve grande influência sobre ele. A curadora diz que incluíram essas peças na exposição para que, ao olhar esses elementos, o público possa criar associações com as obras do artista.
Num quadro da série Improvisação, que nunca foi exposto fora da Rússia, é fácil estabelecer essa relação: elementos abstratos se confundem com flechas, lanças, cavalos e utensílios presentes na cultura popular. Em outro da mesma série, cores jorram em cascatas como as cordas e tiras que pendem das vestes xamãs. É possível ainda assistir a um filme sobre rituais xamanistas que corroboram essa influência sobre o artista.
No bloco dedicado ao impacto da música em Kandinsky, que o acompanha desde a infância, é apresentada sua relação com vários compositores da época. Especial destaque para o alemão Arnold Schönberg, conhecido por ‘desconstruir’ os sons. Eles mantiveram uma forte amizade, retratada na mostra por meio de fotografias, quadros e troca de correspondências. “Kandinsky foi profundamente tocado pela música de Schönberg; a impressão pictórica dos sons fica marcada no artista, que transporta para as telas uma explosão de cores e formas”, comenta Athayde.
Os caminhos até a abstração aparecem no último bloco expositivo. O quadro No branco, pintado em 1920, antes de sair da Rússia, permite antever o que Kandinsky faria na Bauhaus – escola alemã de design, artes e arquitetura de vanguarda, onde o artista lecionaria e introduziria a abstração nas artes visuais. Também em Crepúsculo transparece sua inquietação espiritual e artística dos anos pós-revolução russa.
Foram incluídos ainda objetos utilitários, como seus delicados pratos e xícaras de porcelana – um conceito de pintura sobre louça novo para a época. “Levando a pintura a instrumentos do cotidiano, Kandinsky queria que os soviéticos se aproximassem da arte”, conta Petrova.
As diferentes tendências abstracionistas reunidas na exposição permitem não apenas compreender Kandinsky como também a arte da época em que viveu. A curadora ressalta que as obras abstratas, de algum modo, sempre podem ser lidas. “Não se trata de simples formas e linhas, de jogar as cores nas telas. Há sempre uma intenção de contar algo; e a emoção expressa nos quadros permite essa leitura”, destaca Petrova.
CCBB Belo Horizonte
CCBB São Paulo
Alicia Ivanissevich
Ciência Hoje /RJ