E se Alice resolvesse ficar?

O entretenimento do momento é o filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton. Com um enredo que conjuga elementos tanto do livro homônimo quanto do Alice através do espelho, o filme vem sendo apresentado quase como um novo clássico, compartilhando o status dos livros escritos por Lewis Carroll no século 19.

Fui ver o filme no último fim de semana. Confesso que saí surpresa. Não com os efeitos especiais – embora concorde que um universo em 3D tem tudo a ver com o mundo subterrâneo de Alice –, mas com o uso feito por Burton da história que encanta crianças e adultos há mais de 150 anos.

'Alice': o chá maluco pelo artista plástico Luiz Zerbini
O chá maluco concebido pelo artista plástico Luiz Zerbini para ilustrar edição da Cosac Naify (imagem: divulgação).

É comum, entre historiadores e críticos literários, a associação do livro com a crítica à Inglaterra vitoriana, não só por fugir ao padrão da literatura da época, como também pelas críticas implícitas ao moralismo autoritário da sociedade inglesa do século 19 – como bem destacou o historiador Nicolau Sevcenko no posfácio de sua tradução de Alice (São Paulo, Cosac Naify, 2009).

Para ele, Alice é uma criança que “não incorporou ainda a norma e o hábito da subserviência”. Por isso, ao reagir à prepotência, ao ignorar e subverter as regras, ela implodiria “a lógica do autoritarismo vitoriano” (leia uma entrevista de Sevcenko aqui).

Para além das críticas, o livro traz deliciosas referências históricas, como a passagem sobre a praia e o trem, que nos fazem lembrar do processo de industrialização e modernização por que passava a Inglaterra neste período:

“Alice tinha estado à beira-mar uma vez na vida, e chegara à conclusão geral de que, onde se quer que vá no litoral da Inglaterra, encontram-se uma porção de máquinas de banho no mar, algumas crianças escavando a areia com pás de madeira, uma fileira de hospedarias e, atrás delas, uma estação ferroviária” (edição conjunta de Alice no País das Maravilhas e Através do espelho, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009, p. 28).

Assista aqui ao trailer do filme

 

Críticas nas entrelinhas: universais

Apesar destas referências, uma das características mais interessantes da Alice de Carroll, se analisada do ponto de vista histórico e político, é que, por as críticas ao autoritarismo moralista serem tão implícitas ao texto, ela poderia viver em muitas épocas e locais diferentes. 

Lewis Carroll, autor de 'Alice no País das Maravilhas'
O ‘pai’ da Alice: o escritor e matemático Lewis Carroll viveu entre 1832 e 1898 na Inglaterra (foto: The Granger Collection, Nova York).

Se o autor fosse um brasileiro da década de 1970, aquilo que interpretamos como sendo uma alusão à Inglaterra vitoriana seria entendida como crítica à ditadura militar brasileira. Se fosse português, ao moralismo do regime salazarista. E daí por diante. O texto é universal justamente porque Carroll fala de todos os autoritarismos, de todas as sociedades opressoras e violentas, cujas regras parecem sem sentido àqueles a quem são aplicadas.

Pois bem: nada disso acontece na narrativa de Burton. Ao contrário do livro, no filme, Alice foi datada. Da Inglaterra de meados do século 19, ela não tem como sair. A narrativa começa com uma reunião de negócios. O pai de Alice e seus sócios discutem o futuro. Com ar aventureiro, mapa aberto na mesa, ele sonha com a expansão de seus negócios em escala global: quem sabe Jacarta? Os outros não o levam muito a sério.

Na sequência, vemos Alice anos depois, aos 17 anos, chegando sem o saber naquela que seria sua festa de noivado. Seu pai havia morrido anos antes. Ao ter sua mão pedida em casamento, Alice começa a seguir um coelho que só ela vê, e cai no buraco. E então começa a história mais ou menos da forma como todo mundo a conhece.  

A Alice de Burton não tem, nem de longe, um espírito tão irreverente quanto a de Caroll

Mais ou menos, porque a Alice de Burton não tem, nem de longe, um espírito tão irreverente quanto a de Caroll. Apesar de ser duramente irônica com a decadente aristocracia representada pela família do noivo com a qual sua mãe pretendia que ela se casasse, lá no País das Maravilhas Alice não parece ter nenhuma possibilidade de escolha ou de negociação com seu próprio destino.

Lá pelas tantas, é apresentado a ela um livro com a sua imagem, que a mostra lutando contra um monstro, arma fatal da Rainha Vermelha. É ela que deve lutar contra o monstro e matá-lo. Por várias vezes, Alice diz que não quer e não gosta de matar, mas a imagem é clara: é ela quem deve dar cabo do bicho. E é o que acaba acontecendo.

'Alice': versão da Disney para personagem de Lewis Carroll
A Alice como foi imaginada pela Disney, no desenho animado de 1951 (imagem: reprodução).

Senhora do destino? Nem tanto

Ao matar o monstro e devolver a coroa para a Rainha Branca, Alice não faz nada mais do que cumprir o seu destino. Como, aliás, ao final do filme, em que, perguntada se gostaria de ficar no País das Maravilhas, ela responde que não pode. Há coisas que ela precisa fazer lá em cima. Corta.

Helena Bonham Carter, a Rainha Vermelha em 'Alice'
Helena Bonham Carter, de cabeça inflada, é a Rainha Vermelha de Burton (imagem: divulgação).

Na próxima sequência vemos Alice de volta à cena do seu fracassado noivado, explicando aos perplexos presentes por que ela não poderia se casar naquele momento. Vemos, então, Alice em reunião com o velho sócio de seu pai, combinando os detalhes de sua viagem de negócios à China. Exatamente como queria fazer seu pai. 

Impossível deixar de pensar o que teria sido da expansão inglesa para o Oriente, que fez do Império Britânico o maior do século 19, se Alice tivesse resolvido ficar lá por baixo. Sabe-se lá se a China estaria livre das Guerras do Ópio? Como legítima representante do espírito aventureiro e arrojado da burguesia inglesa, cumprindo o desejo visionário do pai, Alice deixa para trás a aristocracia decadente, encarna o espírito aparentemente livre da burguesia e se manda para a China.

Aqui, a liberdade está apenas nas aparências: a Alice de Burton é a própria imagem do progresso no século 19

Mas, aqui, a liberdade está apenas nas aparências: sem fugir ao seu destino, sem dar espaço para a argumentação dos personagens – que, na sua imaginação, tornaram-se seus amigos, e queriam que ela ficasse lá por baixo – a Alice de Burton é a própria imagem do progresso tal como foi concebido no século 19: um processo inexorável, célere, do qual não se tinha muito como escapar.

Sei não. Muita gente interpreta Alice de diferentes maneiras. O livro continua fascinando psicanalistas, matemáticos, escritores, cineastas, e, de certa forma, adaptações de clássicos são sempre alvos fáceis da crítica. Pode-se alegar, em favor do filme, que não é apenas pelo marketing que ele é um sucesso de público. E que, de todo modo, ele faz com que mais pessoas leiam o livro.

Apesar disso, continuo preferindo o Lewis Carroll mesmo. Menos pelas metáforas que a narrativa suscita, e mais pelos encantos da própria história. E fico com a definição da minha filha de cinco anos, que, acompanhando a discussão na porta do cinema sobre os sentidos da interpretação de Burton, interveio com um certo enfado:

– Mamãe, aquilo era só um buraco!


Keila Grinberg

Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro