Entre a biologia e a cultura

“Somos o que comemos”, diz o famoso aforismo proferido pelo filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872). No entanto, se considerarmos os aspectos biopsicossociais e culturais relacionados à alimentação, é possível afirmar que “comemos o que somos”. Isso porque nos alimentamos não só do que nossos organismos necessitam, mas também (e principalmente) do que nos proporciona prazer, do que é financeiramente acessível e do que é permitido pela cultura em que nos inserimos.

Cientes de que os alimentos, além de nutrir, significam e comunicam, os antropólogos Jesús Contreras, da Universidade de Barcelona, e Mabel Gracia, da Universidade Rovira e Virgili, ambas na Espanha, lançaram, em 2005, o livro Alimentação, sociedade e cultura, agora publicado no Brasil pela Editora Fiocruz. Nele, os autores apresentam algumas contribuições de sua área de pesquisa – a antropologia social – para melhor compreender o fenômeno alimentar. Analisam os condicionamentos e a variabilidade cultural dos comportamentos alimentares e abordam questões ligadas à distinção social e ao culto do corpo, entre outras.

Capa do livro Alimentação, sociedade e culturaO livro mostra como a alimentação oferece um campo de estudo privilegiado para a análise das relações entre natureza e cultura. Uma das principais formas de entender o funcionamento de uma sociedade é conhecer os modos de obtenção dos alimentos, quem os prepara e como, e onde, quando e com quem se come. Todos esses fatores dependem de onde se vive – condição que determina as opções dietéticas e, em consequência, as adaptações fisiológicas que reforçam essas escolhas.

A tolerância à lactose é um exemplo. Estudiosos defendem que, a partir da Revolução Neolítica (que marcou o fim do comportamento nômade), parte da população convertida em pastores e agricultores passou a consumir leite regularmente, e uma mutação que favorece a tolerância ao alimento foi passada para as gerações seguintes como vantagem adaptativa.

De modo semelhante, verifica-se uma intolerância ao trigo na Grã-Bretanha e na Índia, áreas mais distantes do cultivo desse cereal na Eurásia, o que sugere que a incapacidade de digestão esteja relacionada à seleção natural.

Cultura como fator determinante

Mais do que ser regulada por aspectos biológicos, a alimentação está estritamente relacionada à cultura, como apontam as preferências e aversões em relação ao consumo de proteínas, por exemplo. Para alguns, é inconcebível incluir na dieta insetos ou carne de cachorro, prática comum para muitos povos asiáticos. Para outros, pode ser difícil abdicar da carne de porco, como fazem os praticantes de determinadas religiões, ou de vaca, como ocorre na Índia.

Vaca
Entre os aspectos culturais da alimentação estão as próprias preferências e aversões a determinados alimentos. Na Índia, por exemplo, não se come carne de vaca. (foto: Kym McLeod/ Sxc.hu)

A alimentação serve também como forma de classificar e hierarquizar pessoas e grupos. Para Contreras e Gracia, esse processo de diferenciação social ocorre pelo sentido dado aos produtos ou pela codificação sociocultural adotada nas diferentes classes sociais. Imigrantes de regiões distintas residentes na mesma área metropolitana, por exemplo, escolhem o cardápio para um encontro familiar de acordo com sua origem.

“É como certos pratos que se convertem em pratos totem, incorporando um valor simbólico muito peculiar que faz deles uma chave de identidade cultural, indicadores da especificidade e da diferença. Esses pratos recriam uma identidade, e as reuniões para degustá-los em grupo recriam uma comunidade de origem que existe, precisamente, como consequência da imigração”, observam os autores.

O simbólico aparece ainda nas categorizações criadas para os alimentos, que se dividem em saudáveis e não saudáveis, ordinários e festivos, femininos e masculinos, adultos e infantis, puros e impuros, sagrados e profanos etc. Por meio dessas classificações, apontam Contreras e Gracia, constroem-se “as normas que regem nossa relação com a comida e, inclusive, nossas relações com as pessoas”.

Essas complexas conexões sugerem a estreita vinculação, no ato de se alimentar, entre o ser biológico e o ser social. Daí vem, segundo os autores, a importância da antropologia da alimentação, campo de estudo que tende a se consolidar com o interesse e a preocupação, cada vez maiores, das sociedades contemporâneas por assuntos relacionados à nutrição e à dietética. O livro mostra que a contribuição da pesquisa nessa área pode ser fundamental para a melhoria da saúde e da qualidade de vida, a manutenção de identidades locais e a redução de preconceitos, de temores e até dos riscos ligados ao que comemos.

 

Alimentação, sociedade e cultura
Jesús Contreras e Mabel Gracia
Rio de Janeiro, 2011, Editora Fiocruz
496 páginas – R$ 59

 

Daniela Oliveira
Especial para Ciência Hoje On-line