Escrever para quê?

O que leva alguém a se tornar escritor? A resposta vai variar dependendo de quem responder a pergunta. Uma explicação certamente interessante é a do gaúcho Amilcar Bettega Barbosa, 49 anos, engenheiro civil, ex-vendedor de seguros do Banco do Brasil e ex-classificador de títulos de uma livraria.

Não fez sentido? Apesar do currículo atípico, Barbosa vive hoje da literatura e ainda se dedica a estudar o assunto na academia. Em sua tese de doutorado, defendida, em sistema de cooperação universitária, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, na França, ele analisou, a partir da própria experiência, alguns momentos-chave na formação de um escritor.

O primeiro ponto é a passagem da leitura à escrita, que, no caso de Barbosa, se deu no início da década de 1990, época em que acompanhava o andamento de obras pelo interior do Rio Grande do Sul como funcionário de uma empresa de construção civil. “Findo o dia de trabalho, não me restava outra coisa senão ir para o hotel e começar a ler”, relata.

O período de intensas leituras coincidiu com a descoberta da Oficina de Criação Literária da PUC-RS, uma das mais tradicionais do gênero no país. Algo o fez querer deixar o papel de apenas leitor para se inscrever no curso e passar a fazer sua própria literatura. “O quê?”, se perguntaria duas décadas depois.

Da leitura à escrita

Pouco antes de morrer, o filósofo francês Roland Barthes (1915-1980) tinha a mesma dúvida. No seminário La préparation du roman (A preparação do romance), último que ministrou no Collège de France, Barthes interrogava por que havia gente que não fazia literatura. Argumentava que, embora a alfabetização dê a qualquer um a capacidade técnica de escrever, somente algumas pessoas dão esse passo.

Além de estudar as conclusões de Barthes, Barbosa buscou a resposta para a pergunta em outros autores, como o também francês Marcel Proust (1871-1922). No prefácio da edição francesa de um livro do crítico de arte britânico John Ruskin (1819-1900), Proust discorreu sobre a importância da leitura do ponto de vista do escritor.

“Para Proust, a leitura de uma obra literária seria como uma amostra de uma espécie de tesouro que se esconderia em outros textos. Por isso a vontade de continuar”, conta Barbosa.

“O que faz o leitor tornar-se escritor é o desejo de fazer algo semelhante àquilo que lhe deu tanto prazer durante a leitura”

Jean-Paul Sartre (1905-1980) dizia que o que faz uma pessoa querer ler é a busca por algo que falta em sua vida. Também para Barthes, quando o leitor ainda permanece com a sensação de falta, é que surge a necessidade de escrever.

“O que faz o leitor tornar-se escritor é o desejo de fazer algo semelhante àquilo que lhe deu tanto prazer durante a leitura”, resume Barbosa. “Há um prazer incompleto na leitura que desperta no leitor a vontade de completá-lo.”

Do manuscrito ao livro

Dado o passo inicial, o segundo grande momento de passagem na formação de um escritor é a publicação de seu primeiro livro. “Antes disso, você só escreve para, e é lido por, um círculo íntimo de pessoas, como colegas e familiares”, diz Barbosa. “De repente, seu texto passa a circular, com todas as suas limitações, entre pessoas desconhecidas e começa a ser analisado, criticado.”

‘Os lados do círculo', de Amilcar Bettega BarbosaA estreia de Barbosa ocorreu em 1994, aos 30 anos, com O voo da trapezista, uma coletânea de contos selecionada em um concurso destinado a autores inéditos. A partir desse momento, o escritor se deu conta de como sua responsabilidade com o texto passaria a ser maior.

“Enquanto o texto está em um nível privado, o autor tem o controle sobre suas limitações”, diz. “Quando a obra está impressa, todas as fragilidades do texto afloram.”

Desde que passou do manuscrito ao livro impresso, Barbosa publicou outras duas obras: Deixe o quarto como está (2002) e Os lados do círculo (2004), com o qual recebeu o Prêmio Portugal Telecom de 2005.
 

Do conto ao romance

Não é preciso trilhar o caminho do conto ao romance para se considerar escritor, mas Barbosa classifica essa passagem, comum a muitos de seus colegas, como o terceiro momento-chave em sua formação. Mas qual a diferença entre escrever um conto e um romance, além, é claro, do tamanho do texto?

Barbosa pôde fazer essa comparação recentemente. Desde que começou a escrever até pouco tempo atrás, só havia produzido contos. Seu primeiro romance, ainda inédito, faz parte de sua tese de doutorado e deve sair em edição comercial em meados deste ano pela Companhia das Letras (ver Bariyer). A área de concentração ‘escrita criativa’, do programa de pós-graduação em Letras da PUC-RS, permite que parte da tese seja uma ficção, e outra, uma reflexão teórica ou crítica.

“Há muita coisa escrita sobre as diferenças entre conto e romance, mas quase sempre da perspectiva da crítica, não da escrita”

“Há muita coisa escrita sobre as diferenças entre conto e romance, mas quase sempre da perspectiva da crítica, não da escrita”, ressalta. Um aspecto bastante recorrente é a concentração do leitor – muito mais exigida no texto curto, que trabalha com coisas não ditas explicitamente, do que em uma narrativa longa, que se caracteriza pela horizontalidade.

Do ponto de vista da escrita, entretanto, ocorre o inverso, segundo o escritor. Quando se escreve um conto, mesmo que se leve anos para finalizá-lo, há condições de se esquecer por completo de sua história para retomá-la em outra ocasião. “No romance, dependendo do ponto da narrativa em que se está, não há como ler tudo de novo a cada vez que você for sentar para continuar a escrever.”

A solução, diz Barbosa, é não sair do universo do romance. “É preciso vivê-lo o tempo todo, mesmo quando estiver almoçando ou dormindo.” Ele afirma, no entanto, que não há como classificar os gêneros em termos de dificuldade ou qualidade. “Vai depender de cada escritor”, diz. “Eu quis conhecer essa diferença.”

Um trabalho acadêmico diferente

Amilcar Bettega BarbosaCausa certo estranhamento, a princípio, uma tese de doutorado constituída de uma reflexão pessoal e um romance e, ao mesmo tempo, destituída de linguagem acadêmica e método científico tradicionais.

Mas Barbosa considera que, em vez de desviar-se, ele se aproximou de seu tema ao adotar a forma ficcional para discutir a criação literária.

“O que está em jogo, claro, não é uma suposta ‘verdade’ absoluta, se é que isso existe, mas uma verdade possível no interior do texto”, escreveu na introdução de sua tese. “A ideia que eu trazia na cabeça era a de pensar a dita criação literária desde dentro dela, evitando ‘aplicar’ ou ‘testar’ uma teoria sobre algo que em sua essência é prática.”

Para ele, a melhor maneira de refletir sobre a criação literária seria, portanto, exercendo-a. Deu certo. A tese foi aprovada nas duas universidades em que foi defendida. 

Bariyer
O primeiro romance de Amilcar Bettega Barbosa, Bariyer (‘barreira’ em turco) – título provisório –, começou a ser escrito em 2007, quando o escritor viveu, durante um mês, em Istambul, na Turquia. A viagem fazia parte do projeto Amores Expressos, que enviou 16 escritores para diferentes países, nos quais se inspirariam para criar narrativas sobre o amor. “Comecei a escrever, e a história ganhou uma dimensão muito maior”, conta. A trama foi construída basicamente sobre três personagens: uma fotógrafa brasileira; seu pai, um turco nascido em Istambul que se mudou para o Brasil ainda criança; e um francês, autor de guias de viagem. Aos vinte e poucos anos de idade, a fotógrafa decide ir a Istambul, conhecer a cidade de que seu pai tanto falava. Na Turquia conhece o francês, com quem engata um romance passageiro. E, ainda de lá, convence o pai a sair do Brasil para encontrá-la. Mas, quando ele chega, a jovem está desaparecida. Começa, então, uma busca pela filha e também por uma cidade que conheceu na infância e que já não existe mais.

Célio Yano
Ciência Hoje/ PR