Fé no ócio

Auditório abarrotado de jovens empresários, marqueteiros e homens de negócio. Todos reunidos num gigantesco centro de convenções no Rio de Janeiro, onde André Garcia iria palestrar. O evento, direcionado a profissionais do mercado de novas mídias, design e tecnologia, aconteceu em setembro e teve exposições sobre diversos assuntos. Qual é a melhor maneira de viabilizar ideias inovadoras em pouco tempo? Como a nova dinâmica do mercado 3.0 interfere nos negócios? O que é neuromarketing? Essas perguntas – e muitas outras – foram investigadas e respondidas por especialistas ali reunidos.

A empresa começou a funcionar em 2005 e desde o início se destacou pela facilidade de navegação e pela funcionalidade do serviço

Garcia é o jovem empresário criador da Estante Virtual, portal que congrega 1.300 sebos espalhados por cerca de 300 cidades do país e conta com mais de 9 milhões de livros usados e seminovos em seu acervo. As pessoas que estavam ali queriam entender as razões do sucesso daquela startup – o jargão empresarial que surgiu na era da bolha da internet e, em bom português, significa ‘empresas com ideias promissoras que já começaram a ter lucros consideráveis’.

De fato, a Estante Virtual se encaixa nessa definição. A empresa começou a funcionar em 2005 e desde o início se destacou pela facilidade de navegação e pela funcionalidade do serviço. Boa parte desse mérito se deve ao programa de busca do site. Impressiona saber que foi o próprio Garcia, formado em administração e apenas um curioso na área de informática, quem desenvolveu esse código. O rapaz se preparava para um mestrado em psicologia social e tinha dificuldade de encontrar livros para estudar. Sebos eram dispersos e, quando muito, contavam com páginas rudimentares na internet, com péssima catalogação das obras. Por que não agrupar os sebos em uma única página e convencê-los a catalogar de forma minimamente adequada os livros? Assim surgiu a Estante Virtual, empresa de um homem só, que logo contou com mais um ajudante, e mais outro, e outro mais.

Hoje, sete anos depois, a empresa tem 22 funcionários e continua crescendo. É, sem sombra de dúvida, o maior portal de venda de livros usados e seminovos do país, abocanhando mais de 90% do mercado com a venda de 7 mil livros por dia – número de fazer inveja a diversas livrarias.

André Garcia
André Garcia, criador da Estante Virtual, se desiludiu com o sistema de trabalho convencional. Aos 34 anos, ele se sente seguro para propor um novo regime. (foto: divulgação)

A palestra

“O empreendedorismo do ócio”. O tema da palestra destoava do restante das exposições, que em geral, já no título, tendiam ao lema ‘quanto mais trabalho, melhor’. Alinhado a ideias de Domenico de Masi, Paul Lafargue e Bertrand Russell, que escreveram livros teorizando o que é o ócio e a importância dele na vida do homem, Garcia preconizou o inverso: disse um “Vão com calma” para um salão repleto de jovens que já tinham ou queriam criar suas próprias startups. Explicitou sua desilusão com o regime de trabalho convencional, fomentada por quase uma década atuando no setor de marketing de bancos e empresas de telefonia. “Quando vi que o máximo que conseguiria fazer seria roubar 0,01% do lucro da operadora A para a B percebi que ali não era o meu lugar”, contou.

Os funcionários da Estante Virtual trabalham seis horas por dia – em vez das oito habituais – e podem fazer o que quiserem com as duas horas livres

E onde entra o ócio na Estante Virtual? Segundo Garcia, uma pequena mudança no regime de trabalho já é uma fagulha da transformação: os funcionários da Estante Virtual trabalham seis horas por dia – em vez das oito habituais – e podem fazer o que quiserem com as duas horas livres. Na palestra, o empresário apresentou resultados de uma enquete feita com seus empregados. A maioria deu vazão a outra atividade no tempo extra – aulas de guitarra, exercícios físicos e canto lírico foram mencionados na pesquisa. “É o ócio criativo defendido pelo Domenico de Masi”, explicou Garcia, citando a obra do sociólogo italiano, que defende a vivência do ócio por meio da associação do trabalho com lazer e estudo. “Eu incluiria aqui a arte também”, completou.

Além disso, durante a palestra, Garcia descreveu sua empresa como um ótimo lugar para trabalhar, com ausência de hiper-hierarquização, salários acima dos praticados no mercado, atividades não repetitivas que estimulam a criatividade e bom ambiente. Funcionários da Estante Virtual estavam na plateia e reiteraram a fala do empresário. Em determinado momento, a mãe de um deles pediu o microfone e, emocionada, disse: “Meu filho mudou depois que entrou na sua empresa, obrigada, André”. No fim, Garcia dirigiu-se à plateia, ávida por emprego, e falou: “Quem quiser trabalhar conosco pode enviar currículo para o e-mail…”

O local de trabalho

Uma semana depois da palestra, o repórter vai visitar o escritório da Estante Virtual. O objetivo: entender melhor o regime de trabalho e conversar com o criador do site. A sede da empresa é, na verdade, uma casa – dois andares edificados num tradicional bairro da zona sul carioca.

A seção de shiatsu, a churrasqueira, a cantora lírica ocasional e alguns funcionários de bermuda são as únicas marcas que fazem lembrar um regime de trabalho não convencional

No primeiro andar, junto à recepção, apresenta-se um longo corredor, com uma grande sala em obras. A trilha sonora: uma melodia de ópera cantada a plenos pulmões em algum espaço da casa. No fim do corredor, descemos uma escada e um quintal – com churrasqueira – aparece. Do quintal, outra porta se abre e logo estamos num novo corredor onde aparentemente estão as salas dos chefes – Garcia e outros dois administradores. No segundo andar, está o restante dos funcionários: quatro pessoas trabalham na divulgação; duas, na comunicação; duas, no financeiro; quatro, no atendimento; sete, no desenvolvimento. No lugar, há ainda um mezanino de madeira – de 15 em 15 dias, os funcionários têm seções de shiatsu ali.

Aliás, a seção de shiatsu, a churrasqueira, a cantora lírica ocasional e alguns funcionários de bermuda são as únicas marcas que fazem lembrar um regime de trabalho não convencional. Não há mesas de sinuca, totó, pingue-pongue. Não há baias decoradas, bolas de pilates, salas com video game. A Estante Virtual não parece querer emular o regime de trabalho das startups mais famosas – como o Google e o Facebook –, conhecidas por oferecer ao funcionário toda a sorte de entretenimento dentro da própria instituição.

“Esse cenário é emblemático dos RHs das grandes empresas”, diz Garcia, sentado em uma cadeira simples, em sua sala – de tamanho modesto – na sede da Estante Virtual. “Essas empresas não querem revolucionar nada, isso é só sofisticação do modo de controle neoliberal, querem que o funcionário more na empresa.”

Revolução. Eis uma palavra que Garcia fala muito. Às vezes, de modo um tanto desconcertante, como no momento em que o repórter entrou na sala principal da casa – onde um grupo grande de pessoas estava trabalhando – e ouviu do empresário um “Bem-vindo à revolução”. Medo de parecer ingênuo? O criador da Estante Virtual garante que não. “Se nós não fossemos tão eficazmente ensinados que idealismo é besteira, o mundo poderia mudar.”

Crescimento

Assim como ocorre com outras empresas do gênero, a Estante Virtual não divulga quanto lucra. Em 2009, Garcia disse à revista Trip que estimava arrecadar um total de R$ 36 milhões em vendas. Ele garante que, três anos depois, a empresa continua crescendo. O lucro vem da parceria com sebos – 6% do valor das vendas ficam com a Estante. Além disso, os milhares de sebos cadastrados pagam uma cota para hospedar seus livros no portal, que recebe mais de 15 milhões de visitas mensais.

Para 2012, há vários projetos em desenvolvimento. A maioria é para melhorar a qualidade de navegação no site – oferecer, por exemplo, dicas de livros semelhantes aos que são comprados. Além disso, a Estante vai voltar a permitir que qualquer pessoa – e não apenas sebos – venda livros no site.

“Essa é uma questão que precisava ser ajustada, tivemos de parar e fazer essa faceta do serviço funcionar melhor; mas vamos retomar essa ideia, é uma demanda dos próprios usuários”, explica o empresário, que neste ano também implementou no site um novo sistema de pagamento pela internet – o PayPal.

Estante Virtual
Clique para ampliar e ver o ciclo de reutilização de livros sugerido pela Estante Virtual. A empresa faz campanhas educativas que incentivam a leitura e a venda de obras usadas a sebos e livreiros. (imagem: reprodução)

Garcia ressalta que em 2012 houve pequena turbulência em razão da longa greve universitária. Faz sentido, já que grande parte do público da Estante Virtual é formada por estudantes. “É um dado curioso, porque mostra que na verdade as pessoas leem mais por obrigação, mais pelos estudos do que por prazer”, constata, sem tom de crítica. Ele mesmo, em diversos momentos da entrevista, fez questão de afirmar que não é um leitor inveterado. Gosta de ler Rubem Fonseca, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel García Márquez, Paul Auster, Philip Roth; não tem paranoias, no entanto, com quantidade. “Às vezes, não é o momento para ler; às vezes, é preciso exercer uma alienação seletiva”, diz o empresário, que conta, sem nenhuma vergonha, que ainda não se encontrou na poesia. “Foi só outro dia que li Manoel de Barros, e gostei”.

Talvez para ‘seletivamente se alienar’, ele tenha comprado uma casa na Bahia – “pertinho de Trancoso, por um preço que no Rio não se compra nem um conjugado” –, para onde vai algumas vezes no ano. Em geral, trabalha por nove meses e tira férias por três. Tem um iPhone, do qual gosta “pela praticidade”. Tem Facebook, que usa “para encontrar amigos distantes”. Confere e-mails pessoais e de trabalho uma vez por dia. E – regra de ouro – não trabalha mais de seis horas.

“Esse é o grande diferencial daqui. Nós desconstruímos o trabalho enquanto virtude totalitária. Desconstruímos o ócio como pecado capital.”

Quando o tempo livre é problema

Nem sempre, no entanto, a proposta de ‘faça o que quiser com as suas duas horas livres’ é bem digerida. Garcia revela um caso recente de uma funcionária que seria contratada mas, ‘na hora H’, refutou. “Tenho quase certeza de que ela não conseguiu lidar com a ideia de ter duas horas a mais do dia para fazer o que quiser – não houve outra explicação, oferecemos um salário alto, melhor condição de trabalho…”, conta.

“Não é fácil trabalhar o ócio, fácil é manter a cabeça ocupada com trabalho, fazer mil reuniões, seguir conforme a rotina. Difícil é lidar com esse território espinhoso e pouco explorado pelo homem: o que fazer com o tempo livre?”

Garcia gosta de música, toca vários instrumentos – é um dos seus passatempos. Fala com orgulho do fato de, na empresa, haver outros funcionários com gosto comum ao dele. Na sala dos desenvolveres, convoca a cantora lírica da turma. Ela confirma: toma aulas de canto no seu tempo livre. E se o funcionário tiver um perfil workaholic e quiser ultrapassar as seis horas diárias de trabalho? “Desestimulamos, vamos expulsando do escritório aos poucos”, brinca o empresário. “A pessoa precisa se reeducar aqui”.

Chancela e confiança

A casa da Estante Virtual tem um andar inteiro em obras. É para abrir espaço para os funcionários que estão por vir. Em meio a possíveis percalços, como crise financeira, descontinuação do livro de papel e falta de leitores no Brasil, a empresa continua em expansão. Garcia relativiza inclusive o bicho-papão temido por muitas livrarias: o crescimento do mercado de livros digitais.

O fato de ter conseguido vingar no mercado dá ao empresário confiança para afirmar o que pensa sem medo de julgamento

“Não vejo o meu trabalho afetado por isso. O Brasil tem questões socioeconômicas e culturais próprias”, afirma. “Muita gente fala do livro digital substituindo o físico, mas isso vai acontecer amanhã? Eu acho que não, eu acho que no Brasil, se isso acontecer, ainda vai demorar pelo menos uns 30 anos. Não quer dizer que o livro digital não tenha o nicho dele, mas é um nicho pequeno, ainda mais o nicho de livros em português, que são poucos milhares.”

O empresário admite que o fato de ter conseguido vingar no mercado lhe dá confiança para afirmar o que pensa sem medo de julgamento. Do mesmo modo que se comporta como um revolucionário, não se furta a dizer – com absolta naturalidade – que é um filósofo. Tem certeza de que o empreendimento que criou é original. Mas não apenas isso: crê em algo que para ele soa tão valioso quanto a Estante Virtual – o sistema de trabalho que desenvolveu e seu compromisso com o bem-estar do funcionário.

“Quero continuar a dar essas palestras; agora, com a empresa consolidada, caiu a ficha – posso falar com as pessoas com propriedade, é um dever usar minha chancela de empresário bem-sucedido para mostrar que a relativização do trabalho é possível”, defende, completando com real empolgação. “É importante que uma pessoa de dentro do sistema como eu legitime certas ideias – não me vejo só no papel de empresário, mas no papel de professor, de um filósofo que faz a revolução.”


Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line