Quem já estudou filosofia sabe que a disciplina lida com conceitos abstratos, muitas vezes complicados de serem compreendidos sem a ajuda de um professor. Essa dificuldade pode ser ainda maior se o estudante tiver algum tipo de deficiência auditiva. Imagine como traduzir, em sala de aula, noções como ‘metafísica’ ou ou ‘coisa em si’.
Foi pensando em tornar mais fácil o estudo da matéria para esses alunos que a pesquisadora Terezinha Rocha decidiu criar um dicionário de filosofia na língua brasileira de sinais (Libras). Rocha é formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestranda em educação pela mesma instituição. Pelo trabalho, a estudante recebeu o primeiro lugar da edição de 2008 do Prêmio Jovem Cientista na categoria ‘graduando’.
Em formato CD-Rom, o dicionário idealizado por ela apresenta a ‘tradução’ para Libras de cerca de 300 termos ligados à filosofia, que vão desde conceitos como ‘alienação’, ‘consciência e essência’, a nomes de pensadores. Como funciona? Por meio de uma versão filmada do sinal correspondente a cada um dos verbetes e sua definição acompanhada por exemplos.
A noção de metafísica, por exemplo, corresponde a um sinal feito por dois movimentos de mão. No primeiro, uma mão é colocada acima dos olhos, como se a pessoa estivesse olhando para algo que está por perto, como as coisas tangíveis. No segundo movimento, a mão é posta abaixo dos olhos, e o olhar é direcionado para cima, como numa tentativa de ver algo além.
A inspiração para elaborar o sinal, conta a pesquisadora, veio da etimologia do termo: em grego, metafísica significa algo que está para além do mundo físico.
Nomes de alguns filósofos, como Platão e Nietzsche, também foram transformados em sinais. Em ambos os casos, os pelos faciais dos pensadores foi o que chamou a atenção dos envolvidos com a pesquisa.
Platão é representado pela mão imitando a letra ‘P’, posta abaixo do queixo, fazendo referência à sua longa barba, tal qual ele é mostrado no quadro Escola de Atenas, do pintor renascentista Rafael Sanzio (foto).
Já o filósofo alemão teve seu nome transformado num sinal que se refere ao seu bigode. As mãos são quase fechadas, formado uma letra ‘C’, e os dedos são colocados sobre a boca. “O bigode é a característica mais marcante do filósofo e também tem muito a ver com sua personalidade”, justifica Rocha.
O vídeo abaixo mostra como aparece o conceito de ‘abstração’ no dicionário
A obra foi concluída em 2008 e atualmente a reitoria da PUC-MG está negociando com o Ministério da Educação sua produção em grandes tiragens e distribuição para as escolas do país. O material seria um auxílio para professores tanto da graduação, onde a filosofia já integra os currículos dos cursos, e do ensino médio, para o qual voltou a ser obrigatória em 2008 [PDF].
A expectativa da autora é que os termos sejam adotados por um número suficientemente grande de escolas de forma a permitir a padronização e consolidação de um vocabulário filosófico. Outras universidades já manifestaram interesse pelo projeto. “Várias escolas têm vindo aqui para conhecer o método e têm começado a adotá-lo”, conta Rocha. “Isso é muito bom, porque ajuda a evitar o regionalismo dos termos.”
Letra por letra
A ideia de fazer o dicionário, conta Terezinha Rocha, surgiu a partir de seu trabalho como intérprete de aulas de filosofia em uma turma mista, que tinha alguns alunos com deficiência auditiva. Ela percebeu então o quanto era difícil transmitir a explicação dos professores, já que cada palavra tinha que ser traduzida letra por letra pelo alfabeto manual, por não haver sinais específicos em Libras para expressar boa parte dos conceitos tratados.
A prática, chamada de datilologia, tomava tempo e, por isso, havia uma perda entre a última explicação do professor e a tradução. Além disso, essa conversão nem sempre era a mais adequada para a compreensão dos alunos, muitas vezes usuários maternos da língua de sinais.
No contato com outros intérpretes, Rocha percebeu que o problema não era apenas seu e, em parceria com o Núcleo de Apoio a Inclusão de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais (NAI) da PUC-MG, onde trabalhava, propôs a criação do dicionário. “Eu me sentia frustrada por ter estudado filosofia e não poder ajudar a transmitir esse conhecimento para aqueles alunos”, justifica.
O primeiro passo para concretização do projeto foi a realização de um levantamento com alunos surdos e intérpretes para saber quais eram os termos mais utilizados e os mais desafiadores. Em seguida, foi feita uma pesquisa para levantar quais termos já possuíam uma versão no sistema de sinais, e outra bibliográfica, para organizar os conceitos filosóficos que seriam discutidos.
Na segunda fase do projeto, foram organizados encontros com os alunos, intérpretes e educadores de outras instituições para que elaborassem, juntos, os sinais em Libras para cada um dos verbetes. As reuniões envolviam cerca de 20 pessoas e contavam com exposições sobre história da filosofia, para contextualizar o debate e dar condições ao grupo de cunhar os sinais. Para alguns termos, lembra Rocha, não foi possível chegar a um sinal, por isso ainda se usa a datilologia para representá-los, casos de palavras como ‘ente’, ‘exegese’ e ‘cético’.
Concluída essa etapa, foram gravadas as imagens definitivas dos sinais para a confecção do CD-Rom pela TV PUC. Mais tarde, a fase inicial de estruturação do programa do computador foi realizada por alunos de vários cursos, como sistemas de informação. Ambos os trabalhos foram feitos voluntariamente, segundo a mestranda. O conhecimento adquirido com a elaboração do dicionário deverá ser aproveitado para a confecção de outros, de disciplinas como biologia e história.
Inclusão na educação
A linguagem de sinais chegou ao Brasil em meados do século 19 e foi reconhecida como língua em 2002. Quando o sistema começou a ser ensinado pelo professor francês Ernest Huet no Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), fundado por ele em 1857, no Rio de Janeiro, os sinais adotados eram os mesmos usados na França.
Assista a um trecho da entrevista com Terezinha Rocha
Com o tempo, foram sendo criados sinais específicos brasileiros, mais relacionados à cultura nacional. No entanto, até hoje há termos que usam o mesmo sinal nos dois países, como o de ‘mulher’, representado pelo sinal de passar o polegar sobre a bochecha – o gesto remete às grandes fitas de chapéus usadas pelas moças francesas no século 19. Essas fitas caiam sobre os seus rostos.
Avanços têm sido feitos para o uso de Libras na educação. Um decreto de 2005 determinou a inclusão de um curso do sistema nas graduações de licenciatura no prazo de dez anos a partir de sua publicação. Por determinação desse decreto, aqueles que fizerem cursos de licenciatura ou ligados à docência como pedagogia e normal superior deverão dominar a linguagem de Libras, e as escolas precisarão ter ao menos um intérprete para auxiliar os alunos.
Hoje, no entanto, diz Terezinha Rocha, a formação de professores ainda é um problema, porque os poucos cursos de Libras existentes não dão conta da demanda – de acordo com o censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 5,7 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência auditiva.
“A dificuldade não é da universidade, mas de antes, do ensino básico, quando começa o problema do acesso à educação”, diz Rocha. Segundo ela, uma das ações que deveriam ser adotadas pelo governo é o aumento do número de escolas inclusivas. “O colégio em que cursei o ensino médio era inclusivo”, conta. “Foi lá que aprendi a língua de sinais com os próprios alunos, e sei que isso fez diferença para minha formação”.
Por ora, para auxiliar professores e intérpretes de Libras, o NAI disponibiliza as descrições dos movimentos, por texto ou, quando possível, por vídeos. Para solicitar o material, escreva para nai@pucminas.br ou telefone para (31) 3319-4406 / 3319-4611.
Desireé Antônio
Especial para CH On-line / MG