Fiscalização para marisco ver?

O impasse do tributilestanho (TBT) reúne todos os elementos de uma narrativa ambiental mal resolvida. O tema é desconhecido do grande público; é um contaminante elusivo ao qual entidades reguladoras oferecem desleixada atenção; interesses econômicos obtusos associam-se à trama; e estudos de toxicologia podem levar décadas para delinear razoável entendimento científico quanto aos perigos a que são expostos os ecossistemas marinhos.

O cenário é desfavorável. E, como denunciou a Ciência Hoje, o TBT vem sendo usado ilegalmente em algumas regiões do Brasil. Apesar de o contaminante ter sido banido, seus níveis continuam altos em muitas regiões litorâneas – acredita-se, assim, que pequenas marinas e estaleiros de fundo de quintal continuem a usar TBT ilegalmente. Ao contrário dos grandes estaleiros – que já são monitorados por eficientes sistemas de controle ambiental –, a maioria dos pequenos estabelecimentos desse segmento não tem licenciamento ambiental para operar. E que alguns deles, aliás, usam formulações clandestinas de tintas anti-incrustantes não é exatamente uma novidade para os pesquisadores e profissionais do ramo.

Políticas públicas para gestão e fiscalização de TBT nos estabelecimentos de pequeno porte inexistem ou são ainda incipientes

A quem cabe, entretanto, fiscalizar tais práticas? Seria tarefa para órgãos ambientais dos estados ou municípios? Ou seria, quem sabe, uma empreitada para a Marinha? Seja quem for, políticas públicas para gestão e fiscalização de TBT nos estabelecimentos de pequeno porte inexistem ou são ainda incipientes.

A boa notícia é que, sim, já se pensa em botar ordem na casa. “Uma das ações que vêm sendo discutidas para ao menos amenizar esse cenário é a implementação de programas de controle de embalagens de tintas anti-incrustantes, à semelhança do que se faz com embalagens de agrotóxicos”, comenta o oceanógrafo Paulo Tagliani, da Universidade Federal de Rio Grande (Furg). No caso dos venenos agrícolas, embalagens vazias devem ser devolvidas às indústrias. Estuda-se algo similar para o caso das tintas marítimas.

Outra iniciativa que o poder público discute, atualmente, é a implementação de um amplo programa de licenciamento para pequenos estaleiros e marinas em todo o território nacional. “A ideia é promover um controle rígido sobre as práticas de manutenção de cascos de embarcações, evitando assim o aumento da contaminação das águas”, conta Tagliani, que é especialista em questões de gerenciamento costeiro.

Contenda internacional

A novela do TBT tange uma pequena contenda marítima no campo das relações internacionais. “A contaminação de nosso litoral não se origina necessariamente do uso de tintas anti-incrustantes em navios da frota brasileira; mas também de embarcações oriundas de países onde o uso desse tipo de tinta ainda é permitido”, contextualiza o químico Geraldo Magela, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O oceanógrafo Marcos Fernandez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), acrescenta: “Das embarcações que navegam em nossas águas, muitas levam bandeiras de países não signatários dos protocolos internacionais que regem o tema.”

Fernandez: “Das embarcações que navegam em nossas águas, muitas levam bandeiras de países não signatários dos protocolos internacionais que regem o tema”

Segundo Fernandez, agentes brasileiros de fiscalização simplesmente não podem executar análises químicas nos cascos desses navios estando eles na água – uma vez que são considerados parte do território dos países que representam e não podem ser abordados pelos pesquisadores. “E os órgãos oficiais de fiscalização não têm os recursos requeridos para esse tipo de análise in situ”, lembra o oceanógrafo.

A fiscalização acaba sendo feita, portanto, de maneira indireta: órgãos responsáveis devem se contentar com um mero documento, emitido pelo estaleiro responsável pelo navio, afirmando que as tintas anti-incrustantes nele usadas não contêm organoestânicos – como o TBT – danosos ao ecossistema. “Sabe Deus se é verdade”, preocupam-se os pesquisadores.

Esse procedimento burocrático pode até ser eficaz para o caso das embarcações de grande porte que navegam por nossas águas – uma vez que os grandes estaleiros que emitem os certificados requeridos em lei costumam ser adequadamente monitorados. Mas para embarcações menores – de esporte e recreação, por exemplo –, as regras são diferentes. É o próprio proprietário quem assina a documentação relativa ao sistema anti-incrustante. Nesse cenário, os esquemas de fiscalização são, ao que tudo indica, ainda inexistentes. “Isso tem criado problemas de poluição inclusive em áreas de proteção ambiental”, lamenta Fernandez.

A voz da Marinha

Para entender melhor como são feitas essas inspeções, a Ciência Hoje On-line procurou a Marinha do Brasil. O contra-almirante José Roberto Bueno Junior informou que existem dois documentos que regulam o tema. O primeiro é um acordo internacional, a Convenção de Sistemas Anti-incrustantes Danosos em Navios (Convenção AFS), que entrou em vigor no Brasil em maio de 2012. Ao todo, 65 países, que respondem por 82% da tonelagem mercante mundial, são signatários desse acordo. O segundo documento é a Norma da Autoridade Marítima para o Controle de Sistemas Anti-incrustantes Danosos em Embarcações (Normam-23/DPC), que a Marinha editou em 2007.

“Com base nesses dois instrumentos normativos, a Marinha impõe, durante as inspeções navais, as medidas apropriadas para verificar se os navios cumprem as exigências legais estabelecidas”, disse Bueno Junior.

Segundo ele, essas inspeções acontecem da seguinte maneira: primeiro, exige-se que os navios parados em docas brasileiras tenham a bordo o Certificado Internacional de Sistema Anti-incrustante. E, se necessário, coleta-se uma pequena amostra do casco da embarcação – normalmente por raspagem superficial. É um procedimento previsto nas diretrizes da Organização Marítima Internacional (IMO).

“Caso haja motivos para acreditar que o navio esteja violando a Convenção AFS ou a Normam-23, uma inspeção detalhada poderá ser realizada”, explica o contra-almirante.

Barco aportado
No Brasil, é a Marinha que se responsabiliza pela inspeção de navios que aportam em nossas águas. Eles devem trazer a bordo o Certificado Internacional de Sistema Anti-incrustante. (foto: Ivan Baldivieso/ AGECOM/ GOVBA – CC BY 2.0)

Ficam algumas dúvidas. Quão frequentes são essas inspeções navais? Elas acontecem apenas nos navios de grande porte que navegam em nossas águas? E as embarcações de menor porte, cuja manutenção se dá em pequenas marinas ou estaleiros, onde, segundo os cientistas, há indício de uso recente de TBT?

“A Marinha não tem conhecimento dos estudos desenvolvidos pela comunidade científica sobre a medição de TBT em áreas próximas a pequenos estaleiros e pequenas marinas”, informou a instituição à CH On-line.

Sobre as suas responsabilidades nesse caso, a Marinha afirmou: “A Autoridade Marítima, segundo os dispositivos legais vigentes, tem atribuições relativas exclusivamente à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio. Sobre a atribuição relativa à preservação da poluição ambiental, cabe mencionar que as responsabilidades da Autoridade Marítima recaem somente sobre as infrações cometidas por embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio; não contemplando os portos, estaleiros e marinas, nem a produção e comercialização do TBT no Brasil, que são de responsabilidade dos órgãos ambientais.”

Este é o quarto texto da série especial ‘Oceanos envenenados’, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line