Alunos leem o livro de física adotado pelo colégio, leem uma vez e depois outra, mas os conceitos parecem não fazer sentido. Como aceitar teorias como primeira lei de Newton – aquela que diz, em parte de seu enunciado, que um corpo em movimento uniforme continuaria em movimento infinitamente, se nenhuma força, como o atrito, atuasse sobre ele –, como aceitar essa lei se vivemos num mundo com atrito? Ou compreender experimentos cuja validade só se percebe no vácuo, se vivemos imersos no ar?!
Parece que cientistas e ‘não-cientistas’ não vivem no mesmo mundo. Ou pelo menos, não o veem da mesma forma – é o que diria o médico polonês Ludwik Fleck. Para o microbiologista e teórico da ciência, pesquisadores de uma área de conhecimento que se dedicam a compreender um dado fenômeno, ao adotar as mesmas práticas, passam a compartilhar uma certa maneira de pensar e de interpretar os fatos, constituindo o que ele chama de “estilos de pensamento”. Já o grupo que se estrutura em torno desse modo de pensamento forma os “coletivos de pensamento”.
Os coletivos de pensamento, por sua vez, são estruturados em duas esferas: o círculo esotérico, formado por especialistas que já dominam os códigos e procedimentos relacionados à resolução daquele problema, e o círculo exotérico, em que se situa o que Fleck classifica como “leigos instruídos”, pessoas que não são necessariamente cientistas, mas que se relacionam com o saber produzido pelo círculo esotérico.
Essas duas esferas estão em constante comunicação e a produção de conhecimento de cada uma delas é afetada pela outra: o círculo exotérico, no qual encontram-se jornalistas de ciência e gestores de política científica, por exemplo, é a fonte de reconhecimento da importância e legitimidade do conhecimento especializado. Há troca de informações tanto entre os membros de coletivos distintos, caracterizando o que Fleck chamava de circulação intercoletiva de ideias, quanto entre membros de um mesmo coletivo, originando a troca intracoletiva de ideias.
Ideias em trânsito
“Mas, o que isso tudo tem a ver com a educação?”, devem estar se perguntando os leitores da seção. Quem responde é o professor do Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Demétrio Delizoicov, que há quase 20 anos utiliza categorias da epistemologia de Fleck para pensar o processo de aprendizado.
A relação entre sujeito que conhece e objetivo a ser conhecido é, segundo o cientista polonês, mediada por relações históricas, sociais e culturais, que influenciam a própria natureza do conhecimento. Essa visão sociológica do aprendizado combinada aos conceitos de “coletivos de pensamento” e de “estilo de pensamento” – centrais nas teorias do autor – é bastante propícia para analisar como se dá a compreensão por parte dos alunos dos conceitos científicos.
Demétrio Delizoicov fala sobre Fleck no vídeo abaixo
Aqui, os alunos são vistos como um coletivo de ideias, que se relaciona com os outros coletivos – os dos professores e dos cientistas – por meio dos livros didáticos. Essa dinâmica permite ver com mais clareza dois problemas: o primeiro é a formação do professor de ciências, na condição de responsável por mediar a relação entre o pensamento dos cientistas e os alunos; e o segundo, como poderia se dar a transformação dos estilos de pensamentos dos estudantes para que eles compreendam melhor os conceitos.
Como lidar com essas questões? Não há receitas ou respostas prontas, mas Demétrio aponta algumas pistas para pensá-las. Quanto à formação dos professores, ele destaca a importância de uma formação continuada – seja formalmente, por meio de cursos de atualização, pós-graduações, ou informalmente, com a leitura de publicações científicas e também de revistas especializadas no ensino de ciências. Algumas boas leituras são a Alexandria, feita pela UFSC, a Ensaio, editada pela Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Ciência e Educação, mantida pela Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Ele ressalta que, mais do que os esforços individuais dos educadores, épreciso o envolvimento dos responsáveis pela elaboração de políticaseducacionais, propondo projetos que permitam a interação entreprofessores e universidades, como centros de aprimoramento de formação.“O papel do professor merece atenção especial porque ele funciona comoum mediador entre o cientista e o aluno, ele é um ‘leigo formado’ quetenta simplificar o conhecimento produzido pelo coletivo doscientistas”, diz.
Demétrio cita ainda a importância de que os professores visitem laboratórios e conheçam a rotina dos cientistas. “Fleck tinha uma concepção de que ensinar é viver, por isso é importante discutir quem forma o formador, quais práticas o formam”, justifica.
Há um outro desafio: o modo como os alunos são levados a reconhecer uma situação como um problema científico e compreender uma dada teoria. A solução depende também dos professores. Eles precisariam considerar os estudantes como sujeitos sócio-históricos, com peculiaridades, e tentar falar a língua deles.
O meio para fazer isso, que depende de cada turma e de cada professor, tem sido tema de várias pesquisas desenvolvidas por alunos da pós-graduação da UFSC. Eles têm refletido também sobre aspectos históricos da educação em ciências, análises de currículos de licenciatura, além de materiais e práticas voltadas para o ensino de biologia, educação ambiental e saúde pública. Quem quiser conhecer o resultado das investigações dos mestrandos e doutorandos em educação de ciências da UFSC, encontra aqui suas dissertações e teses.
Desireé Antônio
Especial para a CH On-line