Florença e a experiência das coisas modernas

Uma das primeiras cartas conhecidas de Maquiavel foi escrita no dia 9 de março de 1498 para o então embaixador de Florença em Roma, Ricciardo Becchi. Ele tinha 28 anos e se interessava intensamente pela política da cidade. Becchi representava Florença junto ao papado, mas se opunha aos governantes de então e pedira a Maquiavel que descrevesse o que acontecia naqueles dias tensos que antecederam uma mudança política de grande impacto na vida da cidade.

Nessa carta já despontam algumas das características de sua escrita: humor, ironia, precisão na observação. Ela mostra como desde cedo a relação com a cidade iria fornecer-lhe o terreno para a “experiência das coisas modernas”, que, junto com a leitura dos clássicos da Antiguidade, estaria na origem de seu livro mais famoso, O príncipe.

O primeiro fato histórico marcante em sua vida foi a morte de Lourenço de Médici, que havia governado Florença durante muitos anos e deixado uma marca profunda não apenas na vida política da cidade, mas também na cultura, que soubera cultivar e impulsionar. O ano de 1494 foi decisivo para a cidade e para nosso autor. Florença foi ameaçada pelas forças de Carlos VIII, rei da França, com o apoio do tradicional inimigo da cidade Lodovico Sforza, príncipe de Milão.

Por pouco não foi ocupada, sobretudo, depois que Piero, filho de Lourenço, mostrou não estar à altura do desafio que era manter o domínio da família, e resistir aos ataques externos. Foi nesse contexto de medo e incertezas que uma outra figura importante irrompeu na cena pública – Girolamo Savonarola, um frade que dizia conversar com Deus e que queria fazer de Florença uma nova Jerusalém.

Execução de Girolamo Savonarola
A pintura de autoria anônima mostra a execução de Girolamo Savonarola em Florença, em 1498. Este foi um dos acontecimentos marcantes observados pelo jovem Maquiavel, que tirou lições a partir do poder oratório do frade em seus sermões. (imagem: Wikimedia Commons)

Maquiavel apenas observou os acontecimentos. Deles, no entanto, retirou lições que seriam valiosas não apenas para sua carreira como funcionário, mas para a forma como mais tarde procuraria entender a política. A trajetória daquele religioso, que soubera convencer os homens de seu tempo de que tinha uma relação privilegiada com Deus, foi um dos fatos marcantes de sua juventude.

Na carta para Becchi, Maquiavel afirma que no sermão ao qual assistira o frade ia “colorindo suas mentiras” para manter sua influência sobre uma audiência galvanizada por seu carisma. Nada disso impediu que alguns meses depois ele fosse queimado em praça pública, quando apenas as palavras não serviram para assegurar seu poder.

Tradição republicana

Para compreender a alegria e o temor que tomaram conta de Florença no período de 1494 a 1498, é preciso lembrar um pouco de sua história, em particular de sua longa tradição republicana. Desde o final da Idade Média, a cidade se acostumara a viver segundo um regime de liberdades. Isso significava que o estatuto que aprovara de forma autônoma em 1293 era a base de sua existência política, independente dos vínculos que conservava com o Império cristão e a Igreja católica.

A independência de Florença esteve longe, no entanto, de significar que esse tenha sido um período de paz. Ao longo do século 14, duas facções políticas, os guelfos e os gibelinos, se enfrentaram, impedindo que a cidade alcançasse estabilidade. A partir do fim desse século, a aristocracia da cidade conseguiu fixar uma forma de governo que, ao mesmo tempo em que alcançava um certo equilíbrio entre as forças políticas mais importantes, permitia uma participação efetiva de uma parcela de cidadãos na vida pública, algo que outras cidades italianas de então nem sonhavam ter.

Florença
Florença, como Maquiavel a conheceu, trazia uma longa tradição republicana. Desde o final da Idade Média, a cidade se acostumara a viver segundo um regime de liberdades. (foto: Wikimedia Commons)

Em 1498, Maquiavel tinha pouca experiência da vida pública, quando foi eleito pelo Grande Conselho, órgão maior da estrutura de governo da cidade, secretário da Segunda Chancelaria e também secretário dos Dez da Liberdade e da Paz. Eram empregos com funções diversas, uma vez que o primeiro devia ser executado em Florença, junto aos gabinetes da administração, enquanto o segundo implicava em viagens e visitas a outras terras.

Desse período conhecemos apenas dois poemas políticos de Maquiavel: o Primeira decenal e o Segunda decenal. Em Florença era quase uma obrigação para seus altos funcionários escrever algo de cunho literário. Isso acontecia desde o começo do século 15, quando grandes humanistas ocuparam postos importantes da administração da cidade. 

Tendo conhecido reis, príncipes e homens de guerra, ele acumulou uma experiência que seria preciosa quando foi obrigado a deixar a vida pública em 1512

Mas essa incursão pela literatura não foi nem de longe o fato mais importante na vida de nosso autor no período em que se dedicou de corpo e alma às funções para as quais fora escolhido. Tendo conhecido reis, príncipes e homens de guerra, ele acumulou uma experiência que seria preciosa quando foi obrigado a deixar a vida pública em 1512, por ocasião do retorno dos Médici ao poder.

Maquiavel nunca mais voltou a participar ativamente da vida política de sua cidade natal, mas foi a experiência direta de suas lutas, de seus erros e fraquezas que constituiu o material sobre o qual se assentou a obra que revolucionou o pensamento político ocidental.

O príncipe mostra de forma definitiva que ele soube como poucos aproveitar a “experiência das coisas modernas” para forjar um caminho que o transformou num dos fundadores da modernidade política.   

Newton Bignotto
Departamento de Filosofia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais