Foco na periferia

Os escritores William Faulkner (1897-1962), Juan Rulfo (1917-1986) e João Guimarães Rosa (1908-1967) estão entre os maiores nomes da literatura dos Estados Unidos, do México e do Brasil, respectivamente. Estudioso dos contos desses autores, o professor Paulo Moreira, do Departamento de Espanhol e Português da Universidade Yale (EUA), acaba de publicar, pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a obra Modernismo localista das Américas.

Capa de Modernismo localista das AméricasNo livro, Moreira – que se graduou em letras na UFMG e fez mestrado e doutorado em literatura comparada na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (EUA) – articula, em perspectiva comparativa, três pontos que, a seu ver, aproximam a obra daqueles autores: o conto, a estética narrativa moderna e o localismo (termo que prefere usar no lugar de ‘regionalismo’). “Embora se diga que a narrativa moderna é expressão primordial das metrópoles, quase toda a obra de Faulkner, Rulfo e Rosa se ocupa de áreas rurais”, diz Moreira.

Nesta entrevista ao sobreCultura +, ele trata desses eixos temáticos de seu livro, da antologia imaginária de contos dos três autores que criou para embasar suas análises e do quadro atual dos estudos de literatura brasileira nos Estados Unidos.

sobreCultura +: Como nasceu a pesquisa que deu origem ao livro Modernismo localista das Américas? O que há de comum na obra dos autores estudados?
Paulo MoreiraPaulo Moreira
: Tudo começou nas aulas sobre Faulkner e Rulfo em meu curso de mestrado. Lia esses autores, obviamente, com olhos brasileiros. Também tive contato com estudos sobre o modernismo em língua inglesa. As discrepâncias na historiografia do período 1890-1950 revelam certos pontos cegos na visão que cada cultura tem dessa fase. Sobretudo na literatura em língua inglesa, as metrópoles são enfatizadas como centros geradores de um modernismo eminentemente cosmopolita. Mas então o que Faulkner, Rulfo e Guimarães Rosa, três autores considerados centrais no modernismo (no sentido mais amplo do termo), fizeram? Usavam a técnica, a forma de observar e escrever desenvolvidas pelo modernismo para tratar de áreas rurais, pobres e periféricas do ponto de vista econômico e cultural. Isso se tornou um falso problema para vários críticos, que julgavam que áreas periféricas só podiam produzir coisas atrasadas, uma literatura ultrapassada. O melhor do modernismo em termos de literatura nos Estados Unidos, no México e no Brasil foi construído em obras que se debruçaram com consistência quase obsessiva sobre essas regiões. 

Por que o senhor prefere o termo ‘localista’ em vez de ‘regionalista’?
Não vejo sentido em separar autores que se debruçam sobre o meio rural de outros que se debruçam sobre o meio urbano ou suburbano. O que me interessa é chegar à definição de uma atitude do escritor em relação ao mundo sobre o qual ele se debruça. Que atitude é essa? É um olhar ao mesmo tempo cirúrgico e afetivo, que recusa condescendência ou qualquer tipo de sentimento de superioridade que um afastamento crítico poderia suscitar. Escritores urbanos e suburbanos também se concentram na criação de um mundo ficcional específico que carregue um sentido profundo de verdade. Machado de Assis tem com o Rio de Janeiro uma relação íntima, citando em seus contos, um atrás do outro, nomes de ruas e datas que vão montando naquela cidade um mundo particular riquíssimo. O quão imerso numa cidade considerada na época periférica e provinciana como Dublin não está o Ulisses de Joyce? Esse romance seria o que é se a história se passasse em Londres ou Paris? Woody Allen se relaciona com Nova Iorque ou Mário de Andrade com São Paulo também com esse olhar cirúrgico e afetivo. Daí minha preferência pelo termo localista.

E a questão da modernidade?

A ideia de que o mundo rural brasileiro era (ou é) “arcaico” é um erro, sobretudo quando se infere que esse mundo “arcaico” é um mundo mais “simples” do que o mundo urbano. Injusto, sim. Violento, sim. Arcaico, não!

Compartilho da opinião dos estudiosos que, já na década de 1960, falavam da fundação do continente americano sobre bases da propriedade privada e da exploração do capital mercantil. Em inglês, muitos preferem hoje a expressão early modern para qualificar o século 16, e não é gratuitamente que o adjetivo moderno aparece aí. Na conclusão do meu livro há uma longa discussão sobre o termo, comumente usado sem muita reflexão sobre seu sentido. A ideia de que o mundo rural brasileiro era (ou é) “arcaico” é um erro, sobretudo quando se infere que esse mundo “arcaico” é um mundo mais “simples” (o que querem dizer é “simplório”) do que o mundo urbano. Injusto, sim. Violento, sim. Arcaico, não! O que Rulfo, Faulkner e Rosa fizeram de modo brilhante foi mostrar a complexidade dos conflitos humanos e os efeitos das sucessivas ondas de modernização capitalista que vão varrendo essas regiões rurais dupla ou triplamente periféricas que eles escolheram como lugar para criar seu universo literário.

A obra de Faulkner e Rulfo é bem estudada no país de origem desses escritores?
Os centros dos estudos sobre Faulkner e Rulfo estão respectivamente nos Estados Unidos e no México, embora sempre apareçam boas contribuições em outras partes do mundo. Como no caso da obra de Guimarães Rosa, a obra de Rulfo e a de Faulkner exigem domínio das línguas em que foram escritas e entendimento do contexto cultural de onde eles vieram e ao qual eles se referem. Sem isso, acontece o que aconteceu até no Brasil quando um crítico respeitado chamou Riobaldo [personagem de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa] de “caipira”. Além de uma história complexa, tanto o México como os Estados Unidos têm diferenças regionais profundas, que vão muito além dos clichês fabricados pela mídia. Assim como um brasileiro sabe que os Pampas e o sertão do Cariri não são o sertão de Guimarães Rosa, o mexicano sabe que Jalisco não é Chiapas nem Oaxaca nem o norte do México nem Veracruz nem a capital federal. Destaco a atuação incansável da Fundação Juan Rulfo, criada pela família do escritor para divulgar sua obra no México e fora dele. Esse exemplo de dedicação está acima de mero interesse financeiro ligado a direitos autorais. O esforço é para promover não só edições e traduções de qualidade, mas também bons estudos sobre o autor e sua obra em todo o mundo. Vejo com otimismo a produção acadêmica atual sobre esses autores. Como seria de esperar, de cada 10 trabalhos publicados, alguns são ruins, vários dão contribuição apenas modesta e uns poucos são excelentes. Para termos estes últimos, precisamos dos 10, que representam a existência de uma massa crítica que estuda e discute as obras.

Como avalia a recepção da obra de Guimarães Rosa nos Estados Unidos? Há boas traduções de livros dele para o inglês?
JaguarÉ necessária nova tradução de Grande sertão: veredas para o inglês. Tarefa que, sabemos, não é simples. E o mundo anglo-saxão anda muito fechado às literaturas de outros países, sobretudo de autores que morreram há mais de 40 anos. Há contos de Rosa traduzidos no excelente Oxford anthology of the Brazilian short story, editado em 2006 por David Jackson, e uma pequena coletânea, The jaguar and other stories, traduzida pelo inglês David Treece. Há também um livro recente, Studies in the literary achievement of João Guimarães Rosa, que reúne vários artigos importantes, em inglês, e um blogue muito bem feito por Felipe Martinez.

O senhor considera que atualmente há nos Estados Unidos interesse significativo pelo estudo de literatura brasileira?
O interesse tem crescido nos últimos anos, como reflexo do perfil mais saliente do Brasil no cenário global. Hoje há nos Estados Unidos um grupo qualificado de especialistas em literatura brasileira, que reúne não só brasileiros, mas também pessoas de outras nacionalidades.

A antologia imaginária de contos (dos três autores) que o senhor criou e estuda em seu livro contém 15 narrativas, cinco de cada autor, intercaladas em cinco trios. Há um ponto de interseção entre as narrativas de cada trio?
Os temas principais são: conflito mediado entre representantes de uma nova onda de modernidade e aqueles que estão entrando em contato com essa modernidade; formas de confronto possível para o lado mais fraco quando dois lados se encontram em condições muito desiguais; conflito entre saberes e sistemas retóricos diferentes nesse quadro de instabilidade; violência como forma de legitimação de pessoas e grupos que agem no vácuo do Estado, que se omite ou se ausenta completamente; figuras que chamo de ‘órfãs de dinheiro’ (mulheres jovens e pobres que lutam em um sistema patriarcal, inseparável da questão de classe, que as divide entre virgens, mães e prostitutas potenciais).

Rosa, Faulkner e Rulfo
Rosa, Faulkner e Rulfo: unidos pela paixão de ambientar dramas humanos em áreas rurais, pobres e periféricas. (fotos: Wikimedia Commons)

O senhor não pretende buscar editor para essa antologia imaginária, que poderia vir acompanhada do estudo feito na primeira parte de seu livro?
Seria um bom livro para acompanhar o meu, mas não é possível, principalmente se for numa única língua. Não tenho tempo para traduzir os contos que não estão em português e obter permissão para publicar traduções antigas para tê-lo todo numa língua só. Minha proposta é que o leitor trate os contos que lê como faixas de um disco, que ele pode rearranjar como quiser numa produção caseira para seu próprio deleite. O mundo editorial está longe de permitir essa flexibilidade. Os canais independentes existem, mas sofrem com falta de divulgação e distribuição ineficiente. Não conheço bem questões de direitos autorais, mas suponho que qualquer leitor com acesso a uma biblioteca e com um escâner à mão pode montar o livro de contos que quiser, desde que para seu próprio uso. Nunca se sabe o que pode acontecer com a apropriação ainda que de pequena parte de uma obra. Recentemente quiseram processar Woody Allen por ter citado Faulkner no filme Meia-noite em Paris sem autorização. As novas tecnologias oferecem ao leitor a possibilidade de assumir papel mais ativo na seleção do que ler, mas os interesses em proteger direitos autorais são também muito fortes.

Ao criar sua antologia imaginária, o senhor aponta a possibilidade de haver antologias as mais diferentes com narrativas curtas de um autor, não?
Não só o conto favorece essa possibilidade; a poesia também. Poderíamos ter antologias de um só autor ou de vários, mesmo de línguas diferentes, ou uma coletânea de contos sobre animais, de poemas sobre o Rio de Janeiro, de contos sobre a guerra suja nos anos 70, de poemas sobre a morte etc. Com algumas exceções, os livros de contos surgem a partir de uma seleção cuidadosa e de uma deliberação criteriosa da ordem em que os textos se apresentam. Nesse caso, novas possibilidades de compreensão do livro tendem a aparecer. Contos e poemas podem ser lidos dentro do contexto de um livro ou sozinhos, como entidades isoladas.

Em seu livro, o senhor se detém sobre o gênero conto. O senhor acha que o conto, por ser uma narrativa curta, costuma ser visto como gênero menor quando comparado com narrativas mais longas, como a novela e o romance?

O conto não é uma forma mais ou menos fixa que o romance. E não é melhor nem pior. É o que seu autor foi capaz de fazer com ele

Discuto essa questão em detalhes no livro. A crítica sobre contos cai frequentemente na armadilha da crítica de gênero, pensando em “regras” para escrever o “conto perfeito” e no conto como exercício formal com um número limitado de elementos. O conto não é uma forma mais ou menos fixa que o romance. E não é melhor nem pior. É o que seu autor foi capaz de fazer com ele.

O senhor considera que a conceituação tradicional de conto, novela e romance precisa ser revista?
Não creio que o problema seja conceituar em outros termos o conto ou o romance. A teoria é muito importante na medida em que aguça o senso crítico e articula o discurso. Qualquer teoria formalista normativa, que diz que determinado texto deve ser arranjado necessariamente de um jeito específico para ser considerado válido como tal, é para mim pura perda de tempo.

O senhor está trabalhando no projeto de algum outro livro?
Estou finalizando o manuscrito de um novo trabalho, que trata das relações entre artistas e intelectuais brasileiros e mexicanos. O título provisório é Deep undercurrents [Correntes subterrâneas], que se refere à existência de um longo e rico intercâmbio entre indivíduos dos dois países, muito além de qualquer empenho institucional. Estão em foco críticas de Sor Juana Inés de la Cruz a um sermão do Padre Vieira, textos de Machado de Assis sobre a invasão francesa no México, poemas de autores mexicanos sobre o Rio de Janeiro, uma sutil homenagem de Guimarães Rosa a Juan Rulfo, a adaptação de contos de Rubem Fonseca para o cinema pelo cineasta mexicano Paul Leduc e o extraordinário livro de poemas Fiat lux, de Paula Abramo, mexicana filha de exilados brasileiros.