Ícaro virtual

Voar é um antigo sonho da humanidade que, graças à tecnologia, já é possível. Temos aviões, parapentes, asas-deltas e até foguetes. Mas nenhum desses dispositivos nos proporciona a possibilidade de voar como fez Ícaro – personagem da mitologia grega que construiu asas de penas de gaivota e cera de abelha para alcançar o céu. Pairar nas alturas batendo os próprios braços como se fossem asas é também o sonho do engenheiro holandês Jarno Smeets. Um sonho que se tornou realidade no último dia 19.

A trama faz parte de um projeto transmídia que visa criar um novo modo de contar histórias

O parágrafo anterior seria a abertura de um post que eu ia escrever para este blogue sobre a invenção de uma asa de sete metros de comprimento que permitiu a seu criador voar como um pássaro – momento emocionante registrado em um vídeo que teve mais de seis milhões de acessos no Youtube. Seria, não fosse tudo uma grande mentira de internet, uma história que, como Ícaro, despencou.

Mentira não. Segundo o criador da farsa, o cineasta amador e animador gráfico holandês Floris Kaayk, que interpreta Jarno no vídeo, a trama faz parte de um projeto transmídia que visa criar um novo modo de contar histórias.

“Sei que algumas pessoas ficaram desapontadas com o fato de a história não ser real, mas minha intenção nunca foi enganar ninguém e sim compartilhar e tornar visual um sonho pessoal e universal por meio das mídias digitais”, explica Kaayk à CH On-line.  “O único modo de pegar a audiência pela mão e guiá-la por essa incrível viagem era tornar a história o mais real possível. Se eu tivesse dito de cara que eu era um cineasta e que nada era verdade, poucos seguiriam o meu sonho.”

Assista ao vídeo do voo fictício de Jarno

Kaayk e amigos da empresa de comunicação Revolver Media passaram oito meses alimentando diariamente Twitter, Facebook, Youtube e o blogue Human Birdwings, que funcionava com um diário em que o personagem Jarno Smeets compartilhava suas descobertas e avanços na tentativa de fazer um homem voar como um pássaro.

A página, ainda disponível, está repleta de vídeos, esquetes, protótipos e textos que narram a trajetória do projeto e do inventor. Os vídeos de voo foram manipulados com o uso de computação gráfica em 3D, expertise de Kaayk.

Para tornar tudo mais emocionante, Jarno se apresenta no blogue como um idealista que se inspirou no sonho do avô, que também cultivava a vontade de voar e arriscava fazer alguns desenhos de uma máquina voadora. Segundo Kaayk, essa é a única parte da história que tem um pouco de verdade, pois seu avô se chamava Smeets e também se dedicou a realizar esse sonho.

O apelo da história foi tão grande que diversos veículos de comunicação (Wired, G1, Gizmodo, PopularScience, Daily Mail e Discovery, além de jornais locais) noticiaram o voo de Jarno Smeets. No blogue do projeto, pessoas de todo o mundo deixaram comentários e até tentaram ajudar o personagem do engenheiro com sugestões e dicas para melhorar o funcionamento das asas mecânicas.

Sonho real?

O projeto era mesmo elaborado. Kaayk disponibilizou ao público os detalhes da invenção. A asa mecânica teria sido construída com base nas asas dos albatrozes e movimentada por um potente motor alimentado a baterias e ligado a um computador preso a uma mochila. Os pulsos do piloto recebiam sensores de movimento do videogame Wii, que repassavam as informações para o computador. Este tratava de repetir o movimento dos braços nas asas, também equipadas com sensores.

Esquemas da asa mecânica
No site do projeto há esquemas do funcionamento da asa mecânica fictícia. Mesmo que fosse construída, não alçaria voo. (imagens: Floris Kaayk)

Apesar de bem arquitetado, o projeto contradiz as leis da física e, mesmo que fosse sério, não faria um homem levantar-se do chão. O biofísico Henrique Lins de Barros, especialista em história aeronáutica do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), explica que não existe uma solução viável para uma asa como essa.

“O problema é a relação entre peso (pessoa mais aparato) e potência (dada pela limitação da força humana)”, afirma. “Mesmo que o aparato pesasse ‘nada’, o peso da pessoa exigiria uma grande potência para que ela se alçasse ao ar. Seria necessário conseguir uma força de sustentação maior que o peso”. E completa: “O homem definitivamente não foi feito para voar.”

Apesar da limitação do projeto fictício, que vai virar documentário, Kaayk ainda acredita que sua história pode inspirar um dispositivo que funcione de verdade. “Na minha opinião, esse mito pode se tornar realidade com o desenvolvimento tecnológico da última década”, diz. “E é essa visão que queremos compartilhar com o nosso projeto. Muitas pessoas ficaram entusiasmadas com o conceito e compartilharam com seus amigos. Quem sabe não surja um Jarno Smeets real por aí?”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line