Imagine a improvável cena: no ano de 1993, Chico Science folheia uma revista Ciência Hoje. O músico olindense é uma promessa da cena cultural pernambucana. O ‘manguebeat’ – que se tornaria um dos principais movimentos musicais e culturais desde o tropicalismo – é ainda semente na cabeça de Chico, uma ideia em potencial levantada um ano antes, em 1992, pelo release-manifesto ‘Caranguejos com cérebro’, escrito por Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A.
“Injetar energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife” e “conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação do conceito pop”. As duas ações regidas por uma imagem-símbolo: “uma antena parabólica enfiada na lama”.
No começo da década de 1990, as passagens do manifesto provavelmente estão na cabeça do homem à frente do Chico Science & Nação Zumbi, uma então incipiente banda da região.
Pois bem. Nesse momento, Chico lê a Ciência Hoje cuja capa colorida estampa a palavra ‘Caos’ e o editorial fala do nome usado para descrever sistemas com comportamentos complexos, com características aleatórias – “o comportamento caótico, termo ligado ao sentido comum da palavra caos, associado com desordem, acaso, aleatório”.
Aquela Ciência Hoje nas mãos de Chico trata da manifestação do caos em diversos ramos das ciências exatas – onde mais bem se acomoda por conta de sua base matemática –, mas também em searas mais ‘inusitadas’, como a economia, as ciências sociais, a filosofia e… a música.
Chico Science, depois de mergulhar nos artigos da revista por três dias, mostra aos amigos uma nova canção chamada ‘Da lama ao caos’, inspirada na leitura dedicada da publicação, no cenário cultural ‘manguebeat’ da época e no pensamento do cientista e ativista do Recife Josué de Castro, conhecido pela luta de uma vida inteira contra a miséria.
Assista à apresentação do Chico Science & Nação Zumbi, com ‘Da lama ao caos’, em 1994
O restante, a seguir, é história contada e recontada. Aliás, uma das mais importantes da cultura brasileira.
Chico Science & Nação Zumbi lançam, em 1994, o seminal disco Da lama ao caos. Pouco depois do lançamento, os beats da música homônima se propagam pelos ouvidos dos brasileiros, com versos como “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar” e “Da lama ao caos, do caos à lama/ Um homem roubado nunca se engana”.
Rapidamente o movimento ganha ‘patas’. A mídia nacional e a mundial abraçam as ideias de Chico e do ‘manguebeat’. A banda ainda lançaria o também festejado Afrociberdelia em 1996, um ano antes da morte de Chico Science, num estúpido acidente de carro na estrada que liga Olinda a Recife.
A triste data completou 15 anos na semana passada, dia 2 de fevereiro. Nesse mesmo dia, a MTV passou um especial sobre o cantor com depoimentos daqueles que fizeram parte de sua trajetória. Entre eles, o multiartista e agitador cultural H.D. Mabuse, que dividia, em 1993, apartamento com Chico.
E é com Mabuse que a história – um tanto surreal – de Chico Science usando a Ciência Hoje para compor uma das canções mais celebradas da música brasileira ganha contornos menos quiméricos. No programa de TV, o colega de apartamento e amigo do mangueboy fala rapidamente: “Dei aquela revista Ciência Hoje para o Chico. A capa era sobre o caos e dias depois ele veio com a música”.
“Isso é sério?!”, foi a nossa primeira reação.
É. É sério. E quem confirma é o próprio Mabuse, em depoimento por telefone na última terça-feira (7).
“Sim, a história é essa sim. Digo até onde estava quando comprei a revista: teve a Reunião Anual da SBPC em 1993, aqui no Recife. Foi bem na época em que estávamos começando a parada toda. A reunião virou meio um festival aqui na cidade. O evento ficava bem distante da casa de Chico. Encontrei-o para beber e depois, nem sei como, fomos parar na UFPE [lugar do encontro].
Eu me lembro que estava passando um vídeo sobre a matemática e os fractais, todo mundo aplaudia – parecia um show do Led Zeppelin.
Compramos a revista sobre o caos na feira. [Ciência Hoje, nº 80, março/abril de 92]
Bicho, eu morava com o Chico. Ele ficou lendo a revista por três dias e, logo depois, apareceu com a letra de ‘Da Lama ao caos’. Foi aquilo, né? Uma decorrência natural da mistura das ideias da revista com as de Josué de Castro.”
Assista ao programa da MTV
em homenagem a Chico Science
É realmente uma informação para se orgulhar. Não é toda hora que o nosso trabalho se revela tão importante a ponto de influenciar um dos movimentos culturais mais relevantes da história do país. Melhor é descobrir isso em 2012, período em que o Instituto Ciência Hoje celebra 30 anos das suas primeiras iniciativas de divulgação científica.
Como pequena – mas justa – homenagem ao grande Chico Science, digitalizamos a capa e os artigos da revista sobre o caos que relacionam o conceito científico com diversas áreas do conhecimento. Como a obra de Chico, os textos são ainda atuais e valem a leitura.
Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line