Imagens palpáveis

Desde que George Eastman, fundador da Kodak, lançou o sloganYou press the button, we do the rest” (“Você aperta o botão, nós fazemos o resto”), no século 19, a fotografia mudou muito e continua mudando. Sem falar na transição digital, equipamentos sofisticados surgem a cada dia, bem como novas formas de circulação de imagens. Num contexto de onipresença da imagem, o que definiria a fotografia contemporânea?

Olhar Tátil
Clique na imagem para ampliar o cartaz da exposição. (foto: divulgação)

Com Olhar tátil – novos sentidos da fotografia contemporânea, em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio de Janeiro, o jornalista e crítico Mauro Trindade, curador da exposição, nos convida a pensar na natureza eclética da fotografia em nossos dias. A partir do trabalho de 12 fotógrafos – André Sheik, Bruno Veiga, Henrique Koifmann, Ivani Pedrosa, Leonardo Aversa, Marcos Bonisson, Nadam Guerra, Paulo Sérgio Nascimento, Renato Velasco, Ricardo Fasanelo, Teresa Salgado e Zeka Araújo –, ele destaca o tato como dimensão que transcende a experiência visual.

Nessa entrevista ao sobreCultura, Trindade aborda as diversas possibilidades do fazer fotográfico – seja como arte, registro documental, fotojornalismo ou mesmo como memória prosaica do cotidiano – e o diálogo entre elas. Professor substituto de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é doutorando no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, e ex-editor das revistas Arte em Revista e Bravo!, ele reflete sobre os contornos incertos nos quais a linguagem fotográfica se insere na contemporaneidade.


sobreCultura
O termo ‘contemporâneo’ pode ser entendido em seu sentido cronológico; mas, em arte, é usual associá-lo a estilo ou escola. Hoje, o que podemos entender por fotografia contemporânea?
Mauro Trindade: Instituir datas como marcos costuma simplificar a historiografia, mas quase sempre elas não conseguem ajustar os acontecimentos às cronologias implantadas. Tanto é assim com a história mais ampla, que elege fronteiras de abrangência global, como a queda do Império Romano ou o fim da Idade Média, quanto com as histórias de campos específicos do conhecimento, cujas datações de momentos significativos parecem ainda mais arbitrárias ou subjetivas. 

Buscar um denominador comum para assinalar o início do contemporâneo nas artes visuais talvez encubra mais do que esclareça as características do período

Buscar um denominador comum para assinalar o início do contemporâneo nas artes visuais talvez encubra mais do que esclareça as características do período. Por isso é tão difícil traçar limites exatos entre períodos artísticos em toda a história da arte. Não há uma data consensual sobre o início do contemporâneo na arte.

Aliás, o que é mesmo isso? Se pensarmos na arte contemporânea como aquela que existe na mesma época em que vivemos, teríamos de encontrar uma nova classificação para a produção artística dos últimos 30, 40 ou 50 anos, conforme os diferentes historiadores da arte situam o início da era contemporânea na arte. Ou somos contemporâneos há meio século? Mais uma vez caímos nas questões de nomenclatura que, no fundo, refletem o desejo de estabilizar a arte, outorgando-lhe uma reputação e, de certa maneira, anestesiando sua vitalidade.

Mas de que forma podemos entender essa arte? O filósofo Arthur Danto sugere a possibilidade de identificar como característica do contemporâneo a falta de unidade estilística cada vez mais radical. Andy Warhol, entre outros, reforça essa ideia. Ele dizia que um dia poderia pintar como um expressionista abstrato e no outro em um estilo completamente diferente. Isso significa que as qualidades estilísticas e formais não parecem mais dar conta de uma obra de arte.

Talvez a diferença mais marcante entre a arte moderna e a contemporânea seja um sentimento de desinteresse no novo e no futuro, tal qual sonhava a modernidade. Não existe mais – ao menos de forma hegemônica – a ideia de que artistas e grupos de artistas estejam reescrevendo a história da arte a partir de seu marco zero, como se tudo o que foi feito antes, em especial no passado mais recente, deva ser condenado ao esquecimento. Ao contrário, o artista atual dialoga com o passado.

Subjetividade, expressão estética, apreensão da realidade… Qual é a relação entre o fotógrafo contemporâneo e os diferentes caminhos que sua fotografia pode seguir?
A fotografia contemporânea deixou de se pensar como ‘a’ fotografia e hoje é mais fácil a gente pensar em ‘as’ fotografias. Não existe mais uma definição ontológica da fotografia, como queria o crítico André Bazin, para quem o caráter mecânico da fotografia a tornava independente da subjetividade de gêneros expressivos como a pintura ou a escultura. A imagem fotográfica seria “o próprio objeto, objeto livre das condições do tempo e do espaço que o governam”. Isso não faz o menor sentido hoje e a fotografia também é vista como uma forma de representação, não mais um documento, uma prova do real.

É razoável imaginar que o vertiginoso avanço tecnológico vem aprisionando o fotógrafo a conhecimentos cada vez mais especializados? A crescente sofisticação técnica poderia ofuscar a subjetividade?
Tem uma expressão antiga que é genial a esse respeito: “Caneta de ouro escreve melhor?”. Os fotógrafos que apostaram em equipamentos cada vez mais sofisticados quebraram a cara porque descobriram que se continuassem a fotografar a partir da lógica do equipamento, fariam apenas um determinado tipo de fotografia. Quem discutiu muito bem essa questão do equipamento “estar programado” foi Vilém Flusser, um pensador ainda bastante atual. Não é a qualidade da máquina que define a melhor fotografia, mas quem está atrás dela. É verdade que há muitos fotógrafos que pensam apenas em fotografia, e não em arte e cultura.

Sem título
‘Sem título’, da artista Yara Pina, natural de Goiânia. Para o curador Mauro Trindade, fotografias não são apenas registros, mas uma maneira nova de compreender as coisas. (foto: Yara Pina)

Em contraponto, vem sendo praticada atualmente, com estatuto de arte, a fotografia com celular – o ‘tosco’ serve como linguagem, talvez em reação a esse tecnicismo…
A transparência da imagem transformava o fotografado na própria fotografia. Era uma ideia que hoje parece estar em colapso. Daí que muitos artistas tentem mostrar a opacidade do meio, o equipamento e a feitura – artificial – da imagem. Com o digital essa clareza aumenta.

O que se chama de tosco, e mesmo o que se chama de sofisticado, não é uma qualidade intrínseca da fotografia, mas uma convenção. Se tem pixels visíveis, é ruim, se não tem, é boa. Isso não é valor em si, mas uma forma simbólica. Toda imagem tem de ser interpretada e nós a compreendemos por meio de uma pedagogia. Entendemos que, se uma fotografia tem pixels, ela é de baixa resolução, o que passamos a compreender como uma imagem registrada com um equipamento de tecnologia arcaica. 

Como o historiador Erwin Panofsky estudou, com uma erudição ímpar, a perspectiva renascentista é marcada pelo princípio da uniformidade, mas esta é uma forma de apreensão da realidade. A fotografia digital se dá de forma muito diferente, na qual a superfície se destaca ante a profundidade.

Em função da onipresença da imagem e da possibilidade de se fotografar a qualquer instante e em praticamente qualquer circunstância, vivemos um processo de banalização da fotografia? Ou um processo inédito de possibilidade de enriquecimento da linguagem fotográfica? Essa situação pode aproximar, de algum modo, amadores e profissionais?
Esse limite já está rompido há algum tempo. Há muita discussão sobre o caráter ‘amador’ dos blogs e da internet em geral, por exemplo. Mas quem fotografou a Primavera Árabe? Os profissionais? Claro, eles também estavam lá. Mas a foto do Kadhafi sendo morto, das manifestações no Egito, do que acontece em qualquer parte, é feita por celulares de amadores. 

É só ligar a tevê e ver todo dia uma imagem de celular de acidente, de policial roubando, de celebridade, e por aí vai. Não creio que os profissionais da fotografia desapareçam, mas seu foco está mudando. Eles não têm mais de fazer o flagrante, o onipresente celular faz isso. Então a fotografia jornalística mudou também. Basta ver, por exemplo, o trabalho de Daniela Dacorso ou de Gustavo Pellizon. Muitas vezes, o tema da reportagem sequer está nas fotos. Eles não são factuais, mas oníricos, sugestivos, transcendentes.

Você afirma que “artistas utilizam, e subvertem, determinadas caraterísticas do equipamento em busca de um trabalho expressivo.” Poderia comentar alguns exemplos?
O fotógrafo André Sheik, por exemplo – para citar integrantes da mostra Olhar Tátil – trabalha com o ‘ruído’ eletrônico de seu equipamento, criando uma visualidade inexistente no mundo ‘real’. Ivani Pedrosa aproxima, pelo enquadramento e pela baixa resolução de imagem, a fotografia da memória. Zeka Araújo impede que saibamos a escala que têm suas fotografias, provocando estranheza e indeterminação. Ricardo Fasanelo fotografa aleatoriamente, com resultados inusitados. São inúmeras as possibilidades.

Como define “olhar tátil”, título que deu à exposição?
Por conta de vidros de carros, aviões e prédios que nos separam do mundo, do excesso de telas digitais e da saturação de imagens nas grandes cidades, a visão se tornou incerta e o corpo requisita outros sentidos para se situar. Em especial, o tato, de cuja importância e dimensão nem sempre nos damos conta.

O que fica muito claro – ou se preferir, palpável – é que necessitamos do tato para estabelecermos uma compreensão mais segura de onde estamos e de nossa realidade

Em todos os trabalhos reunidos nessa mostra, a questão do tátil está presente. Por exemplo, Renato Velasco fotografa objetos esmigalhados e incrustados ao asfalto, em uma arqueologia urbana que só pode ser vista muito de perto, quando estamos quase tocando a pavimentação. 

Nadam Guerra filma e fotografa seu próprio corpo a uma distância que não nos permite saber direito o que estamos vendo, se um queixo barbudo ou a púbis. O que fica muito claro – ou se preferir, palpável – é que necessitamos do tato para estabelecermos uma compreensão mais segura de onde estamos e de nossa realidade. Nas palavras do poeta Paul Valéry, “a pele é o mais profundo”.

Como a fotografia lida com o dilema da representação do real?
A fotografia sempre pensou no real como um dado pronto. Se refletirmos mais sobre o assunto, vamos reparar que, se desejamos realmente entender essa questão,  será preciso antes uma reflexão sobre o que é, afinal, o real. E aí entramos no campo da metafísica. Acredito que a maneira dogmática como a fotografia foi vista por tanto tempo faz parte de uma concepção mais ampla de mundo da qual a fotografia foi sua expressão. As representações estão mudando e se, no campo filosófico, fica difícil imaginar uma causa primeira para todas as coisas, é muito mais difícil acreditar em uma única fotografia. Há mais de um real.