Impressões mexicanas (parte 1)

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A famigerada fila B do avião. Onde tudo dá errado.

PARTE 1: A VIAGEM

Viajamos para encontrar o outro (locais e/ou pessoas, conhecidos ou não). Desta vez, defrontei-me com minha imagem especular. Revi o passado (longínquo) ao qual inexoravelmente pertenço. México.

Viajo com relutância. Meu pessimismo me faz resistir a esses deslocamentos desmemoriados. Fugir da rotina é difícil. É parte desse binômio ao qual me acostumei: eu + meu quadro mental, esse uno multidimensional, porém indissociável.

Dias antes de embarcar, reclamo. Reclamo… Digo preferir Boston, Londres, até mesmo Paris (onde fui maltratado em função de meu francês de sobrevivência). Colegas revelam inveja pela oportunidade (a minha). Arrependo-me (é sempre assim) 32 vezes/dia pelo “aceito com prazer o convite…”.

Cometo a catacrese: embarco no avião. Um misto de esquecimento e inexperiência me bota na fila B. A temível. A terrível. A inominável. Por algum motivo desconhecido, o passageiro do meio (fila B) não tem direito aos apoios das poltronas. Esses artefatos (deve ser coisa de alguma lei celestial desconhecida pela física) pertencem aos ‘latifundiários’ das filas A (janela) e C (corredor) – temporariamente, meus piores inimigos. Meus braços têm que ‘flutuar’. Doem.

Agravante: o avião é um Boeing 737. Pequeno, muito

Agravante: o avião é um Boeing 737 alguma coisa. Pequeno, muito. Os assentos são estreitos; a distância ao banco da frente, curta. Minhas pernas entram em ressonância com os braços. Os quatro membros latejam.

“Aceito com prazer o convite…”.

À minha esquerda, um guatemalteco, cabelo rapado, quase zero, meio obeso, camiseta com endereço de internet estampado.

Simpático. À esquerda, um mexicano que, dias depois, me dou conta, tem profunda semelhança com um dos três maiores escritores do século passado: Primo Levi (o outro é Kafka, e o terceiro varia conforme a época; gosto que seja assim). O mexicano, sério, tem atitudes de cavalheiro (toda vez que a fila A ou B pedem para ir ao banheiro, ele se levanta e parece entender aquilo com a tranquilidade de um pai). Ele lê Elogio de la lentitud (não encontro tradução para o português), do jornalista canadense Carl Honoré.

Nós, os três latinos, não conversamos muito. O guatemalteco, que veio ao Brasil em função de um convênio entre os dois países sobre o uso de programas de computador sem direitos autorais (o tal software livre), faz piada breve sobre o fato de o avião percorrer muito da pista antes de decolar: “[…] por la carretera”. Entendo, concordo, rio amareladamente e reforço: “Vamos pelo solo”. É um esforço de entendimento diplomático. Assunto encerrado. Silenciamos os três.

Depois de dois filmes (certo, já havia visto Harry Porter e o Príncipe mestiço com meu filho, mas quem se importa? Não me lembro do outro filme, mas quem se importa?), vem o jantar. Nunca bebo (lição dos muçulmanos; dos judeus, valor à cultura; dos espíritas, a caridade; com os católicos, ainda não consegui aprender nada). Peço vinho. Talvez, me anestesie. Repito a dose “Una copa más, por favor”. Os vizinhos da esquerda e direita optam pelo mesmo.

Cidade do Panamá, 17h. Retomo às relações diplomáticas com a Guatemala

Cidade do Panamá, 17h e alguma coisa, horário local. Retomo às relações diplomáticas com a Guatemala. Ele me diz que o canal do Panamá é longe. Acho que tenho cinco horas de espera. O mexicano me corrige: três horas. Já no aeroporto, ele me diz que o freeshop é grande. Certamente, um eufemismo para o maior que vi até agora. Uma ‘avenida’ vai; a outra volta. Total do circuito: imagino uns… dois quarteirões. Vou até o final da pista de ida. Há mais à frente. Desisto. Impressiona o número de lojas e o tamanho delas. Os preços, no entanto, não são dos melhores.

Tento ligar meu notebook. Descubro o primeiro ‘choque’ cultural entre os dois países: as tomadas no Panamá são daquelas de dois pinos retangulares (no Brasil, são redondos). A adaptação tecnológica me custa US$ 9. Foi minha contribuição para o produto nacional bruto do Panamá.

Vinte horas e alguma coisa. Nova catacrese. A malfadada fila B me espera. Embarco me sentindo uma Ana Bolena (porém, sem a fé religiosa) rumo à execução. Destino: Cidade do México. Mais cerca de 3h de voo. Na fila A, um jovem, 30 anos?, portador de vários artefatos tecnológicos modernos. Fala carinhosamente com o(a) filho(a), que, pela resposta, pede um presente. Ele explica que está no avião e, ao chegar ao México, tratará do assunto. É carinhoso com a criança e educado nas poucas vezes que dirige a palavra a mim ou ao pessoal de bordo.

Harry Porter e o Príncipe mestiço. De novo.

Saco da mochila, velha, comprada há 12 anos em Amsterdã, o texto ‘Beyond the quantum’, do físico Antony Valentini, do Imperial College de Londres, publicado na sempre bacana Physics World (novembro deste ano, pp. 32-37). Nele, ele tenta mostrar como a ideias do físico francês Louis De Broglie (1892-1987), que mostrou teoricamente, na década de 1920, que os elétrons têm propriedades tanto corpusculares quanto ondulatórias, podem resolver as esquisitices dos fenômenos que ocorrem na dimensão molecular, atômica e subatômica. Muito interessante. De Broglie é Nobel de Física de 1929.

[Análise anacrônica: na volta ao Brasil, para minha surpresa, Valentini dá uma palestra no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ), instituição irmã (quase mãe, na verdade) do Instituto Ciência Hoje. Inicia com uma revisão histórica interessante sobre a famosa conferência internacional de Solvay, de 1927, na Bélgica, na qual Einstein e Bohr teriam sido as estrelas do encontro. Ele mostra que isso não é verdade: o famoso debate Einstein-Bohr, sobre a ‘alma’ da natureza, não passou de conversa de café da manhã, entre outros interstícios temporais. Sua fala adentra trechos mais técnicos. Saio, pois tenho que fechar a edição de dezembro de Ciência Hoje.]

Na fila C, um senhor, cerca de 70 anos, com cara de dono de hacienda, pele castigada pelo sol, vestindo aquela camisa típica do México, com detalhes bordados verticais que seguem, paralelamente aos botões, de cima a baixo, dos dois lados do peito. Usa um relógio caro. Percebo que seus amigos, na mesma faixa etária, também têm alguns milhares de dólares no pulso.

Cidade do México. Passo rapidamente por aqueles longos corredores, mas percebo o bom gosto da arquitetura. Longa fila para a entrada de estrangeiros. Parece-me que os mexicanos também precisam entrar em fila (que se arrasta lentamente como a nossa). Estranho. Penso que os brasileiros, nesse quesito, estão mais ‘desenvolvidos’. Por aqui, a entrada é rápida, e a coisa só embaça mesmo para os de fora.

Chega minha vez. Torço para não pegar um agente de migração com cara enfezada. Dou sorte

Chega minha vez. Torço para não pegar um agente de migração com cara enfezada. Dou sorte. Ele chama o cara na minha frente, que segue como se rumasse ao abatedouro. Presto a ele minha solidariedade por meio do olhar. A agente que trata do meu caso checa a veracidade de meu visto (de 10 anos), passando a mão sobre o plástico transparente que o recobre. Minha foto está irreconhecível. Por precaução, tenho em mãos a carta-convite do Instituto de Ciencia y Tecnología del Distrito Federal (ICyTDF), um tipo de fundação de apoio à ciência da capital mexicana, para a palestra de duas horas na Universidad Autónoma de la Ciudad de México (UACM).

[Em tempo: O visto mexicano me custou cópias do saldo bancário, aplicações, previdência privada, ultimas três faturas do cartão de crédito e formulários preenchidos. Tudo isso porque o México, por pressão do governo G. W. Bush, para evitar (certo, diminuir) a entrada de brasileiros ilegais nos EUA, passou a exigir visto de nós, famosos lá no norte por nos tornamos ilegais nos países dos outros. O Brasil exige visto dos mexicanos, coisa permitida pela tal reciprocidade diplomática ou algo similar.]

Pego a bagagem, e lá há um senhor que confere atenciosamente se o número do canhoto bate com o que está na mala (deveria ser assim no Brasil, não? Sempre imagino que, se agarrar uma das malas que ficam desfilando na esteira e for embora, ninguém me deterá. Nesse quesito, o México está mais ‘desenvolvido’). Para sair, tenho que passar a mochila velha e a mala (cuja alça acabou de quebrar) pela máquina de raios X. Aprovado.

Arturo e Claudia, dois jornalistas mexicanos e colegas de longa data, me esperam na saída. São 11h e alguma coisa. São calorosos comigo. São latinos. Gosto disso (a frieza educada do europeu e a desconfiança amedrontada dos norte-americanos – estes treinados desde criancinhas para temerem o outro, como mostra Michael Moore em Tiros em Columbine – me incomodam).

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‘Plaza de la Constitución de la Ciudad de México’, informalmente conhecida como ‘Zócalo’.

O caminho para o hotel poderia ser um passeio, digamos, da Avenida Brasil ao centro histórico da cidade do Rio. Pequenos comércios (alguns com cara de ilegalidade), casas modestas, pouca iluminação, asfalto sem reparos, ruas pequenas e desertas que vertem da avenida principal e parecem levar à escuridão… De repente, o trajeto nos despeja em uma praça ampla, com construções magníficas, igrejas monumentais. Tudo iluminado, e a presença de algo que não vou esquecer: a bandeira GIGANTESCA do México em um mastro no centro desse quadrado, chamado Zócalo, com uns 300 metros de lado. A grandiosidade iluminada da história mexicana me estapeia, para me arrancar do torpor de quase nove horas de viagem.

Poucas ruas desertas a mais e chegamos ao hotel, bem próximo àquele centro histórico (é assim que os mexicanos o chamam). Pego as chaves do quarto (426) e recebo de Claudia publicações do ICyTDF, um pendrive (que para os mexicanos é USB) e um bolo de notas de pesos mexicanos (por um instante, me sinto um narco).

Alerta: todas as despesas devem ser comprovadas com facturas (notas ficais), das quais devem constar cinco linhas de dados sobre o dono por direito das verbas: a UACM.

O destaque da noite é Jesús. É a simpatia sobre duas pernas. Carrega minha mala (literalmente, sem alça) até o labirinto de corredores que nos levam ao 426. Fala comigo e sempre olha para trás, como se já houvesse decorado o caminho. No quarto, aponta coisas, liga outras, diz frases que não escuto. Antes de sair, repete vagarosamente algo assim: “Senhor, sinta-se à vontade para me pedir o que quiser… [agora, mais vagarosamente ainda, enfatizando as palavras] o que quiser. Na maior confiança.” Agradeço e, em um lampejo de pensamento, imagino que se pedir a Jesús para improvisar uma festa naquela mesma noite, com cinco bailarinas mexicanas lindas e nuas, garrafas de tequila e um grupo de mariachis, isso seria dos milagres mais fáceis para ele. Desisto do plano. Encerro o assunto com a imagem da atriz mexicana Salma Hayek, vestida de vampira em Um drink no inferno, de Quentin Tarantino, na cabeça.

Jesús se vai, levando uma nota de cinco dólares (algo como 65 pesos, o que permitirá a ele fazer exatamente 32 viagens de metrô, sobrando-lhe 1 peso). Câmbio: R$ 1 = 7,5 pesos mexicanos.

Já é madrugada de 26/11. Durmo.

A história me espera pacientemente lá fora.

 

Cássio Leite Vieira

Ciência Hoje / RJ

O jornalista viajou no final de novembro a convite do Instituto de Ciencia y Tecnología del Distrito Federal y la Universidad Autónoma de la Ciudad de México. O tema de sua palestra: ‘Jornalismo sobre ciência: história, formação, linguagem e o erro’.

* Esta é a primeira parte do relato da viagem de Cássio ao México. Aguardem novas postagens.