Individualismo e caos no trânsito

O trânsito caótico da cidade de São Paulo foi escolhido como palco de um estudo sobre o comportamento dos condutores, envolvendo a percepção que têm de espaço público. Fosse um teste, estaria reprovada a maioria dos entrevistados, que assume uma postura individualista na qual o interesse pessoal está acima da lei e, portanto, do bem-estar coletivo.

“Não há noção de espaço público e de civilidade na orientação da conduta dos usuários de trânsito em São Paulo”, afirma a socióloga Alessandra Olivato, responsável pela pesquisa, base de sua dissertação de mestrado defendida em 2002, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Foram feitas entrevistas de cerca de uma hora com 54 pessoas, abordadas nas ruas de São Paulo, pertencentes às seguintes categorias: pedestres, motoboys, motoristas de carro, ônibus, táxi e lotação. Cada um falou livremente da percepção que tem de si mesmo e dos outros no trânsito, como entende as leis e autoridades, o espaço público e a civilidade.

A partir dos resultados, Olivato observou que há uma ‘lógica privada’ que rege a conduta dos agentes do trânsito. “Nessa lógica a tentativa de cumprir a lei, por exemplo, não está relacionada ao bem comum, mas a princípios religiosos, ao caráter ou à boa educação familiar”, diz. A maioria dos entrevistados admite cometer infrações, via de regra justificadas por motivos pessoais, que são sentidos como prioritários à lei. Boa parte refere-se às leis como meramente punitivas, considerando as autoridades de trânsito rigorosas e injustas, e relaciona os pedestres, assim como os demais motoristas, a ‘obstáculos’ do trânsito.

A pesquisadora associa a má conduta dos motoristas a uma tendência à privatização do espaço público, predominante nas duas últimas décadas, seguida da desvalorização do mesmo. “Hoje o espaço público é sentido como um lugar desagradável, devido a fatores como violência e poluição de todos os tipos”, diz Olivato, que lembra que o espaço público é o ‘lugar do cidadão’.

A tendência é agravada por fatores históricos que imprimiram um sentido negativo à cidadania brasileira. “Não há orgulho em dizer ‘sou cidadão’ no Brasil. Sentimos ter deveres mas não direitos”, diz, acrescentando que em um país onde as pessoas não se sentem cidadãs, a individualidade acaba prevalecendo. “Isso afeta a nossa conduta no trânsito, tornando-a hostil e agressiva”, afirma a socióloga.

O estudo também relaciona tal comportamento à má formação dos condutores e destaca o Novo Código de Trânsito, em vigor desde 1998, como um importante instrumento de possível mudança na conduta dos motoristas. Com ele, algumas auto-escolas substituíram a formação tradicionalmente técnica dos condutores por cursos que incluem noções de civilidade e direção defensiva — em que o condutor deve prever os eventos no trânsito –, além de palestras e noções de primeiros socorros essenciais à boa convivência nesse espaço público. Mas os resultados ainda são muito incipientes.

Enquanto os motoristas e pedestres não desenvolvem uma educação cívica no trânsito, baseada no sentimento de co-responsabilidade pelo bem coletivo, a punição prevista nas leis ainda contribui para coibir as infrações e defender uns dos outros no caos urbano.

Ciência Hoje 192, abril 2003
Maria Ganem,
Ciência Hoje/RJ