Andrew Fire (esq.) e Craig Mello (dir.), contemplados com o Nobel de medicina ou fisiologia em 2006. Fotos: Stanford (esq.) e UMass (dir.).
O Nobel de medicina ou fisiologia deste ano contempla a descoberta de um mecanismo que permite silenciar a atividade de genes específicos e controlar o fluxo de informação genética na célula. A interferência de RNA – ou simplesmente RNAi – foi descrita pelos norte-americanos Andrew Fire, da Universidade de Stanford, e Craig Mello, da Universidade de Massachusetts (ambas nos EUA), que dividirão o prêmio de cerca de 1,3 milhão de dólares.
O mecanismo descoberto pela dupla ocorre naturalmente nas células de plantas e animais – especula-se que ele tenha sido desenvolvido há centenas de milhões de anos, como uma forma de proteção. Em plantas e animais invertebrados, a interferência de RNA é uma defesa importante contra ataques de vírus. O fenômeno é essencial também na manutenção da estabilidade do material genético, na medida em que mantém sob controle elementos móveis do genoma (os transposons ou genes saltadores) que podem comprometer as funções do organismo dependendo do ponto em que forem inseridos.
O prêmio contempla um estudo realizado há relativamente pouco tempo, para os padrões do Nobel: a descoberta da interferência de RNA foi relatada em artigo publicado em fevereiro de 1998 na Nature , há pouco mais de oito anos. Desde então, a RNAi se tornou uma ferramenta importante de pesquisa básica que permite identificar a função de genes específicos. Além disso, a técnica se anuncia como um campo promissor na pesquisa médica aplicada: já estão sendo testados tratamentos inspirados na RNAi para combater a infecção por vírus como o HIV e para silenciar a atividade de genes envolvidos em várias formas de câncer.
O anúncio do prêmio foi bem recebido por especialistas. “A escolha não me surpreende”, afirma a bióloga Marisa Bianco Bonjardim, que trabalha com pesquisa de RNAi na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Esta é uma ferramenta que teve impacto muito grande sobre a biologia. O conhecimento desse processo é bastante novo, mas tem se desenvolvido intensamente nos últimos anos devido à enormidade de aplicações possíveis. De 2000 pra cá, evoluiu muito o que sabemos sobre esse mecanismo, sobre os genes nele envolvidos e sobre os processos que acontecem naturalmente nas células envolvendo RNAi.”
DNA e RNA
A maior parte da informação genética dos seres vivos eucariotos está contida no DNA, armazenado no núcleo da célula. Essa informação é usada para comandar a síntese de proteínas, que ocorre no citoplasma, fora do núcleo. O transporte dessa informação para o citoplasma é feito com o auxílio do chamado RNA mensageiro (RNAm), molécula construída à imagem de pequenas porções do DNA.
A descoberta de Fire e Mello ajudou a mostrar que as funções do RNA na célula vão muito além de simplesmente transportar as informações do DNA para o citoplasma da célula, como se acreditou durante décadas. A importância do mecanismo de RNAi é que ele permite a degradação do RNAm de um gene específico e, com isso, o silenciamento de sua expressão, mostrando-se um processo fundamental na regulação da informação genética.
A interferência de RNA se dá na presença de moléculas de RNA de dupla fita (o RNA mensageiro é uma molécula de fita simples, formada à imagem de um dos braços (ou fitas) da dupla hélice de DNA). O RNA de dupla fita ativa as estruturas responsáveis pela degradação do RNAm que tem aquela mesma seqüência genética. Com isso, a proteína que seria sintetizada a partir das informações desse RNAm deixa de ser produzida e o gene em questão fica silenciado.
A RNAi foi descoberta quando Andrew Fire e Craig Mello estavam investigando a regulação da expressão gênica no verme nematóide Caenorhabditis elegans , um organismo modelo muito usado em estudos de biologia do desenvolvimento. Ao injetar nas células desse verme o RNAm responsável por comandar a síntese de uma proteína muscular, eles não notaram qualquer efeito. Ao injetar a mesma seqüência de RNAm com suas bases genéticas dispostas no sentido inverso (‘anti-senso’), tampouco observaram qualquer mudança no comportamento do animal. No entanto, quando injetaram ambas as formas (senso e anti-senso) juntas, eles verificaram que o verme passou a exibir movimentos peculiares, observados apenas em animais que não tinham um gene responsável por codificar aquela proteína muscular.
Ao se parearem, os RNAs senso e anti-senso se ligam um ao outro e formam o RNA de dupla fita. Fire e Mello formularam então a hipótese de que esse RNA de dupla fita poderia estar ligado ao silenciamento do gene que tem a mesma seqüência daquele RNA. Para testá-la, a dupla injetou RNAs de dupla fita contendo seqüências responsáveis por comandar a síntese de diversas outras proteínas do C. elegans . Eles notaram que o método levava sistematicamente ao silenciamento do gene que tinha a mesma seqüência do RNA e, com isso, a proteína associada a esse gene deixava de ser produzida.
Novo campo de pesquisa
A descoberta da RNAi ajudou a explicar resultados experimentais contraditórios que vinham sendo obtidos desde o início dos anos 1990 e revelou um mecanismo natural para o controle do fluxo da informação genética, criando assim todo um novo campo de pesquisa na biologia celular.
Cerca de um ano depois da publicação do artigo da Nature , a ocorrência da RNAi já havia sido registrada em moscas-das-frutas, tripanossomos, plantas, vermes, peixes e outros organismos. Logo a generalidade do fenômeno em organismos eucariotos foi provada e seus mecanismos elucidados, em estudos com células de moscas Drosophila em cultura.
O desenvolvimento da RNAi motivou a criação de inúmeras linhas de pesquisa sobre o tema em todo o mundo, inclusive no Brasil. “Nosso grupo de pesquisa na UFMG, liderado pelo professor Cláudio Bonjardim, investiga o uso da RNAi com um gene celular que interfere na multiplicação do vírus Vaccinia ”, conta Marisa Bonjardim. “Trabalhando com células de camundongo in vitro , tentamos silenciar esse gene para entender como isso interfere na capacidade do vírus de se multiplicar dentro da célula.”
A RNAi abre ainda perspectivas promissoras de aplicação na pesquisa médica aplicada e na biotecnologia. No futuro, acredita-se que ela possa ser usada na regulação da atividade gênica com objetivos específicos. Na agricultura, por exemplo, ela poderia ser adotada para otimizar a expressão de genes específicos em organismos geneticamente modificados.
Na pesquisa médica, avanços expressivos já foram obtidos. Relatos bem-sucedidos de silenciamento de genes em células de humanos e outros animais com o auxílio da RNAi foram publicados recentemente. Já foi possível, por exemplo, adotar a técnica para silenciar em animais de laboratório um gene ligado ao colesterol alto. Da mesma forma, espera-se que sejam desenvolvidos RNAs que permitam tratar de infecções virais, doenças cardiovasculares, câncer, distúrbios hormonais e outras enfermidades.
“A técnica já está sendo usada em pesquisas contra o HIV, HPV e vírus de hepatite C e levou a resultados impressionantes em pesquisas sobre câncer de células do fígado decorrente da hepatite em camundongos”, conta Marisa Bonjardim.
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
02/10/2006