Jornada pela música brasileira do século 20

Para muitos, o nome de José Antônio Resende de Almeida Prado (1943-2010) não é dos mais familiares. Uma pena. Ele foi um dos compositores brasileiros mais influentes do século 20.

Neste verão, ganhou vida o primeiro registro integral de sua obra solo para violão. São quatro composições: ‘Sonata no1’, ‘Poesilúdio no1’, ‘Portrait’ e ‘Livro para seis cordas’. Foram gravadas pelas mãos ágeis de Fabio Scarduelli, violonista e pesquisador do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“Já há gravações esparsas dessas obras, mas a reunião delas em um único disco é algo inédito”, diz Scarduelli. “Apesar de Almeida Prado ser um compositor de reconhecimento internacional, sua obra para violão solo encontrava-se praticamente esquecida.”

O lançamento, porém, não se limita à obra de Almeida Prado. O violonista incluiu peças de outros dois importantes compositores paulistas: Camargo Guarnieri (1907-1993) e Edson Ortolan (1958). O título do CD, pois, não poderia ser outro: Música paulista para violão.

De Guarnieri, o violonista gravou a ‘Valsa choro’ e o ‘Ponteio’. E, de Ortolan, as ‘Cinco pequenas fantasias de esquina’, obra inspirada nas Valsas de Esquina, de Francisco Mignone (1897-1986).

Esse álbum é a materialização das pesquisas que Scarduelli vem desenvolvendo na Unicamp – seu mestrado e seu doutorado foram dedicados ao estudo do tema, com direito à revisão de partituras e análise interpretativa das obras. “A ideia é interligar, o máximo possível, a produção do conhecimento e o trabalho artístico”, comenta Scarduelli.

violonista Fábio Scarduelli
Será em Curitiba, no dia 15 deste mês, a próxima apresentação do violonista, que buscou uma síntese do violão erudito brasileiro no século 20. (foto: Isabela Senatore/ Divulgação)

O lançamento do CD, distribuído pelo selo independente Tratore, ocorreu em Santos (SP) em 8 de fevereiro, durante homenagem aos 70 anos do nascimento de Almeida Prado. O próximo concerto está previsto para 15 de março, no Sesc do Paço, em Curitiba (PR).

Sonata do tempo: da tradição à vanguarda

Ouvir Guarnieri, Almeida Prado e Ortolan em um único disco é uma jornada pela música brasileira do século 20. Por um simples motivo: esses compositores personificam três gerações que, de alguma forma, uniram-se pelos laços da relação mestre-discípulo.

Guarnieri foi professor de Almeida Prado, que, por sua vez, deu aulas a Edson Ortolan. Assim, o novo CD traz uma narrativa musical que ilustra um amplo cenário estético e simboliza, de certa maneira, o movimento de progressão que experimentou a música brasileira do último século.

O CD traz uma narrativa musical que ilustra um amplo cenário estético e simboliza, de certa maneira, o movimento de progressão que experimentou a música brasileira do século 20

Música que se viu dividida em torno de um notável embate – de um lado, a valorização da arte nacionalista; de outro, a busca por uma estética universal. “Foram duas correntes marcantes”, diz Scarduelli. “Enquanto uma prezava pela música de concerto inspirada no folclore, outra se preocupou mais com o caráter universal da arte, com uma música destituída de elementos rítmicos e melódicos pertencentes a uma identidade nacional.”

Guarnieri foi um dos representantes do espírito nacionalista. E Almeida Prado, de início, seguiu esses passos – mas, na década de 1960, rompeu com seu velho mestre. Trilhou caminhos que o fizeram buscar novas possibilidades sonoras que transcenderiam os limites da inspiração folclórica.

Vale lembrar: Almeida Prado foi influenciado por ninguém menos que Olivier Messiaen (1908-1992) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007) – que podem ser considerados, por assim dizer, arautos da música de vanguarda do século 20.

Sobre repertórios e reflexões

Do repertório recém-gravado por Scarduelli, uma das obras mais envolventes é o ‘Livro para seis cordas’. Dividida em três movimentos (Discurso, Meditação e Memória), a peça é de sonoridade etérea e evoca uma atmosfera contemplativa – prevalecendo texturas e impressões arrítmicas em melodias não declaradas.

Ela foi escrita poucas semanas antes de Almeida Prado ter publicado a célebre ‘Cartas celestes nº1’, composta originalmente para o Planetário do Ibirapuera, em São Paulo, e muitos de seus elementos são antecipados no ‘Livro para seis cordas’.

Ouça um excerto do ‘Livro para seis cordas’, de Almeida Prado

Na sequência, ouve-se a ‘Valsa choro’, de Guarnieri, composta em homenagem a um de seus filhos. Scarduelli captou a essência do estilo guarnieriano, sempre marcado por delicadas doses de sutileza e mistério. “Nessa valsa, os baixos típicos do gênero dialogam com o lirismo da voz cantante”, diz o músico e pesquisador da Unicamp. “Guarnieri é um compositor que ainda está sendo redescoberto”, diz ele – o sobreCultura + publicou recentemente matéria sobre o assunto.

Ouça um excerto da ‘Valsa choro’, de Guarnieri

Também as ‘Cinco pequenas valsas de esquina’, de Ortolan, soam como uma agradável surpresa – pelo menos aos não iniciados na obra deste compositor, que, ainda pouco citado no Brasil, já tem algum prestígio na Europa. “A ideia é referenciar os gêneros tocados nas ruas das cidades brasileiras, retrabalhados com técnicas da música erudita contemporânea”, explica o músico. “Atonalismo, fragmentação melódica, colagem, efeitos de timbre, em uma atmosfera que nos remete ainda à música barroca por sua ornamentação sempre presente.”

Ouça um excerto das ‘Cinco pequenas valsas de esquina’, de Ortolan

Da primeira à última faixa, o ouvinte terá contato com diferentes texturas, percepções e matizes – da tradição nacionalista à vanguarda experimental.

A experiência auditiva é coroada pelo timbre reluzente de um violão Sérgio Abreu. Confeccionado em pinho e jacarandá da Bahia, é considerado pelos violonistas uma obra de arte da luteria. Em boas mãos, o instrumento cumpre importante papel ao apresentar um repertório que, ainda pouco explorado, reafirma a riqueza estética da música brasileira do século 20.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
São quatro as obras solo para violão de Almeida Prado, e não cinco como havíamos divulgado – ‘Serenata para a lua cheia’ é um trio para violões. Já a composição ‘Livro para seis cordas’ foi escrita pouco antes de ‘Cartas celestes nº1’, e não do conjunto da obra, como dito anteriormente. (06//03/2013)