Pela primeira vez desde 1994 o prêmio Nobel da Paz foi compartilhado hoje entre três pessoas. E pela primeira vez na história da premiação, entre três mulheres. A láurea concedida às liberianas Ellen Johnson Sirleaf e Leymah Gbowee e à iemenita Tawakkul Karman, além do reconhecimento da trajetória individual das homenageadas, está carregada de outros significados.
As três estiveram à frente de movimentos de oposição a regimes autoritários: Sirleaf e Gbowee na Libéria, república localizada da África Ocidental, e Karman no Iêmen, país árabe da Península Arábica.
Para o sociólogo Valter Silvério, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a premiação de Sirleaf e Gbowee, duas ativistas dos direitos humanos na Libéria, reflete um momento de mudança pelo qual o mundo passa. “Estamos começando a ver a África sob outra perspectiva”, afirma.
Silvério é o responsável pela versão brasileira da coleção de livros História geral da África, que trata do continente a partir do ponto de vista local. Para ele, o reconhecimento é merecido e fará com que o restante do mundo dê mais atenção à região. “É importante pensar que regimes autoritários como o combatido por Sirleaf e Gbowee são herança de uma colonização perpetrada por países desenvolvidos.”
O prêmio anunciado hoje pelo Comitê Norueguês do Nobel ressalta também a importância da mulher no processo de construção da paz no mundo. O secretário-geral da organização humanitária Anistia Internacional, Salil Shetty, afirmou que a premiação “reconhece o que os ativistas de direitos humanos sabem há décadas: que a promoção da igualdade é essencial para a construção de sociedades justas e pacíficas ao redor do mundo”.
Em nota, representantes da União Europeia enfatizaram a importância das laureadas no estabelecimento da democracia na África e no mundo árabe, “no qual se pode viver em paz e respeitando os direitos humanos”. Há alguns meses o bloco repudia a reação violenta do governo do Iêmen às manifestações populares a favor da democracia.
Apesar de o Nobel destinar a láurea a quem luta pelos direitos das mulheres, a desigualdade entre os gêneros se reflete até mesmo na história do prêmio, que, desde 1901, laureou 784 homens e apenas 44 mulheres. A premiação de hoje ajuda a reduzir um pouco essa diferença. “É uma espécie de mea culpa da Fundação Nobel”, diz Valter Silvério.
Primeira mulher a comandar um país africano
Apelidada de “Dama de Ferro” por conta de sua determinação no combate aos regimes ditatoriais da Libéria, a atual presidente do país Ellen Johnson Sirleaf chegou a ser presa e exilada duas vezes ao longo de sua trajetória.
Nascida em Monróvia, capital da Libéria, em 1938, obteve o título de mestre em administração pública pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em 1971. Em 1979 chegou a ser nomeada ministra das finanças da Libéria, mas foi obrigada a deixar o país um ano depois, após golpe de estado em que o sargento Samuel Doe tomou o poder.
Em 1985 voltou à Libéria para candidatar-se ao cargo de vice-presidente, mas acabou condenada a 10 anos de prisão por criticar o regime de Doe em um discurso público. Por pressão de autoridades internacionais, o governo acabou libertando a ativista, mas a proibiu de concorrer ao cargo que pretendia, liberando a opção de se candidatar ao Senado.
Sirleaf foi eleita, porém se recusou a tomar posse em protesto contra fraudes que teriam ocorrido na votação que reelegeu Doe. Em 1989 apoiou um golpe de estado perpetrado por Charles Taylor, mas posteriormente se opôs ao novo governo. Em 1997 enfrentou o antigo aliado nas eleições presidenciais e acabou obrigada a deixar o país novamente, acusada de traição.
O país passou por um período de guerra civil, que terminou apenas em 2003 com a fuga de Taylor. Em 2005, Sirleaf foi eleita presidente da Libéria. Era a primeira mulher a assumir o comando de um país africano.
Em abril de 2010 Sirleaf esteve no Brasil e fechou uma série de acordos bilaterais com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em áreas como educação e esporte. Prestes a completar 72 anos, disputará a reeleição na próxima terça-feira (11).
Líder de uma greve nacional de sexo
A história da também liberiana Leymah Gbowee está ligada à de Ellen Sirleaf. Ativista dos direitos das mulheres, Gbowee contribuiu para o fim da última guerra civil no país por meio de uma inusitada estratégia de não-violência. Em 2002, ela mobilizou mulheres de toda a Libéria, independentemente de etnia ou religião, e conclamou uma greve nacional de sexo.
A proposta era que toda a população feminina se negasse a ir para a cama com seus companheiros até que os combates tivessem fim. A iniciativa surtiu efeito, e o ditador Charles Taylor se viu obrigado a integrá-la às negociações de paz no país.
Taylor acabou deixando o poder em 2003 por causa de uma revolta armada que se instalou no país. A queda do presidente abriu espaço para a eleição de Ellen Sirleaf.
Desde 2005, Gbowee, atualmente com 39 anos, vive em Gana. Ela é personagem central do documentário Pray the devil back to hell (Reze para que o diabo volte ao inferno), lançado em 2008 e que aborda o movimento de paz composto por mulheres liberianas.
Contra Ali Abdullah Saleh
A terceira laureada com o Nobel da Paz deste ano é a jornalista e ativista iemenita Tawakkul Karman, que se tornou conhecida mundialmente este ano por conta dos protestos de que participou contra o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, na chamada Primavera Árabe – onda de manifestações contra regimes ditatoriais que ocorre no Oriente Médio e norte da África.
Em entrevista à rede de televisão árabe Al-Arabiya, sediada em Dubai, Karman disse que dedica o prêmio a todos os ativistas que participam do movimento.
Figura importante do maior partido de oposição iemenita, liderou várias das manifestações contra o regime, embora seu pai tenha sido ministro da Justiça de Saleh. Ela chegou a ser presa em 24 de janeiro passado por conta de manifestações contrárias ao governo. Acabou solta após protestos por todo o país.
Sua história de militância em defesa dos direitos humanos não é de hoje. Desde 2005 Karman é presidente da organização Mulheres Jornalistas sem Correntes, criada por ela mesma naquele ano. A ativista também coordena o chamado Conselho dos Jovens da Revolução Árabe.
Nascida em 7 de fevereiro de 1979, torna-se, por alguns dias de diferença, a mulher mais jovem a ganhar um Nobel, desbancando a ativista irlandesa Mairead Corrigan, que foi laureada aos 32 anos também com o prêmio na categoria Paz, em 1976.
Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR